Últimos desejos: é preciso planejar a destinação de nossos bens
Por Rodrigo da Cunha Pereira*
Publicado em Revista Consultor Jurídico, 21 de agosto de 2016
Embora a certeza mais absoluta da vida seja a morte, temos muita dificuldade em deparar-nos com essa realidade. Certamente em razão dessa dificuldade, evitamos pensar, falar ou fazer testamento. Ainda não está incorporado na cultura jurídica brasileira a elaboração de testamentos. Apenas 5% da sucessão hereditária é feita com disposição de última vontade. Deveríamos mudar esse mau hábito e começar a fazê-los, incorporando-o no saudável ato de um planejamento sucessório.
Segundo a tradição do Direito Civil, testamento é o ato jurídico unilateral, solene, revogável e personalíssimo pelo qual alguém capaz e de livre e espontânea vontade dispõe sobre sua última vontade para questões patrimoniais ou não patrimoniais, para ser cumprida depois de sua morte (artigos 1.857 e seguintes, CCB). A capacidade de testar se dá a partir de 16 anos de idade. Classificam-se em ordinários (público, particular e cerrado) e especiais (marítimo, militar ou aeronáutico). Não estão sujeitos à prescrição de direito ou decadência. Mesmo que tenha passado décadas entre sua elaboração e a morte do testador, ele mantém-se válido, se não tiver ocorrido sua revogação. Os testamentos que dispõem de “bens de pequena monta” ainda são denominados de codicilo ou testamento anão.
Apesar de toda evolução tecnológica, o direito das sucessões ainda não chegou na terceira revolução tecnológica, que é a digital (a primeira foi a agricultura; a segunda, a industrial). Com tanta tecnologia à disposição, é inadmissível pensar que não podemos traduzir nosso legado e nossa última vontade em vídeo-testamento, por exemplo. Embora não haja previsão legal dessa modalidade de testamento, nada impede que o façamos, no mínimo para reforçar ou confirmar um testamento particular, evitando-se assim sua invalidade. Ora, se o Direito deve proteger mais a essência do que a forma ou formalidade que o cerca, ninguém pode duvidar de que ali há a mais pura, cristalina e inequívoca manifestação de autonomia e de vontade.
As regras do Direito das Sucessões têm sido “imexíveis” há séculos. As razões econômicas, patrimoniais e patriarcais sempre falaram mais alto para mantê-las tal como está. Mas a revolução digital, associada ao afeto como valor e princípio jurídico, nos obriga a questionar conceitos estabilizados como legítima, herdeiros necessários etc. Não é simples nem fácil mudar esses conceitos e muito menos aprovar projetos de leis nesse sentido, pois aí residem concepções econômicas e morais que não interessam ao atual Congresso Nacional alterá-los. Mas como a vida é maior do que o Direito, aos poucos a doutrina tem criado mecanismo para fazer adaptações ao nosso tempo, mesmo permanecendo dentro da tradição e formalidade, como nos testamentos genético, ético, vital e digital.
Testamento genético, ou biológico, é aquele feito por quem tem material genético criopreservado (espermatozóide, óvulo, embrião), estabelecendo-se aí instruções sobre sua utilização ou descarte. A única disposição normativa sobre o assunto é a Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre reprodução assistida pos mortem, desde que autorizada previamente pelo morto. O assunto ainda gera muita polêmica, e estamos longe de termos uma lei nesse sentido.
Testamento ético é uma expressão utilizada pelo Direito americano — Ethical will — para designar o testamento em que se transmite aos familiares ou outros herdeiros valores menos patrimoniais e mais morais, espirituais, conselhos, condutas ou experiências que sirvam de reflexão a quem se destina. Assemelha-se ao codicilo (artigo 1.881, CCB), mas se diferencia dele por trazer consigo e em sua essência um conteúdo imaterial, de transmissão de valores morais e éticos. Tais disposições podem, obviamente, constar em quaisquer outras formas testamentárias, inclusive em conjunto com outras disposições de última vontade. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de Direito de Família Ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015, P. 677/678).
Testamento vital, também conhecido como “consentimento informado” ou “Diretivas antecipadas de vontade”, é disposição de última vontade, mas para ser cumprida antes da morte, ou melhor, nos momentos que antecedem à morte: “Mediante ato expresso, público ou particular, a pessoa declara que não deseja o prolongamento artificial de sua vida, dependente de aparelhos, remédios ou nutrição forçada, ou que, em situações em que venha a perder consciência de modo prolongado, seus negócios sejam geridos por determinada pessoa e segundo determinadas instruções” (cf. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2016, P.254). O número de testamentos vitais tem crescido no Brasil. Segundo dados do Colégio Notarial do Brasil, foram registrados 50 testamentos em 2010, mas em 2015 esses registros subiram para 600. Esses dados vêm ao encontro de uma das grandes questões do Direito Civil atual que é a autonomia de vontade, mesmo no final da vida. Também estamos longe de termos uma lei aprovada sobre esse assunto. É que ele nos traz à reflexão valores e conteúdos como eutanásia e ortotanásia. Em um Estado que ainda não é laico e com um Congresso Nacional cujas concepções predominantes advém de uma moral religiosa, tão cedo não veremos lei nesse sentido.
O testamento digital, nomenclatura ainda em construção, surge da necessidade de garantir aos herdeiros a transmissão de todos os conteúdos de contas digitais. Oito em cada dez brasileiros estão conectados no Facebook. Mais de um bilhão de pessoas de todo o mundo tem dados nessas redes, e muitos deles continuam após sua morte. O PL 4.099/2012, que trata do assunto, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça no final de 2013, remetido ao Senado Federal, e lá permanece, desde então, sem nenhuma movimentação. Embora não seja um PL polêmico nem traga conteúdo moral, não há nenhuma perspectiva de votação próxima, como tem acontecido com a maioria dos PLs. Quem viver verá! Enquanto isso, é possível nomear um administrador digital para depois da morte: legacy contact. E assim “a página se transforma em um memorial, em que o gestor pode fixar um post descritivo, alterar fotos de perfil e de capa e aceitar nos pedidos de amizade” etc. (ROSENVALD, Nelson. Boletim Eletrônico Informativo IBDFAM – n.º 448, 17/08/2016).
Deparar-se com nossa finitude talvez seja nossa maior angústia. Por isso, lidamos tão mal com a maior certeza da vida. Mas é preciso enfrentar e planejar a destinação de nossos bens. Assim, pelo menos poderemos evitar ou diminuir brigas entre herdeiros, especialmente com a triste realidade dos processos judiciais de inventários que não acabam nunca. E nesse planejamento não podemos esquecer de Vinícius de Morais e Toquinho, que já cantaram essa bola quando remetem para outros valores com sua eterna música Testamento:
Você que só ganha para juntar/ O que é que há, diz prá mim o que é que há?/ Você vai ver um dia/ Em que fria você vai entrar./ Por cima uma lage/ Embaixo a escuridão/ É fogo, irmão! É fogo, irmão!/ (…) E você com todo seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou (…).
*Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.