Os reflexos das evoluções no Direito de Família e o Registro Civil das Pessoas Naturais
Entrevista do advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em Direito de Família e Sucessões, à Arpen-Brasil sobre a relação existente entre Direito de Família e o RCPN
As relações familiares estão em constante evolução no mundo. Consequentemente, o Direito de Família também passa por adaptações constantes para comportar as demandas que novas estruturas familiares passam a ter. Da mesma forma, os reflexos de tais evoluções também se amparam no Registro Civil das Pessoas Naturais, ponto de apoio à população na busca da garantia de direitos que promovem o seu acesso à cidadania, de acordo com a personalidade individual de cada cidadão.
Para fala sobre o tema, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) entrevistou o presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira. Advogado especializado em Direito de Família e Sucessões, com ênfase interdisciplinar em Psicanálise, ele também é professor de Direito Civil – Direito de Família na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
Leia a íntegra da entrevista:
Arpen/BR – O Provimento nº 63/2017 CNJ que, entre outras providências, que estabelece o reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva nos Cartórios de Registro Civil, completou três anos de publicação. Qual a importância dessa decisão tomada pelo CNJ?
Rodrigo da Cunha Pereira – A importância desta decisão está no fato de que o Direito brasileiro já deveria ter entendido que, por mais que se queira atribuir uma paternidade pela via do laço biológico, ele jamais conseguirá impor que o genitor se torne o pai. Com isto, podemos entender que a Constituição brasileira de 1988, ao interferir no sistema de filiação, buscou delimitar com profundidade o verdadeiro sentido da parentalidade, que está acima dos laços sanguíneos. Um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será o pai. Por isto podemos dizer que a verdadeira paternidade é adotiva e está ligada à função, escolha, enfim, ao desejo. João Baptista Villela, já no final da década de 1970, em seu revolucionário texto “A desbiologização da paternidade”, desenvolvendo a tese da paternidade como fator cultural, nos relembra, citando o evangelho de S. João, que somente ao pai adotivo é dada a faculdade de um dia repetir aos seus filhos o que Cristo disse aos seus apóstolos: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi a vós”.
Arpen/BR – Quais objetivos eram esperados com esta normatização?
Rodrigo da Cunha Pereira – O objetivo esperado é no sentido de corrigir injustiças e reforçar a vontade soberana da Constituição Federal, perfazendo a igualdade de filiação, e reiterando que uma simples gota de sangue não é capaz de atestar a verdadeira parentalidade. Por mais que as leis jurídicas queiram trazer garantias da paternidade por meio dos registros cartoriais, de investigações de paternidade, etc, por mais que seja importante para o filho saber sua origem genética, não há como assegurar, pela via apenas jurídica, a verdadeira paternidade. Esta, como já dito, é muito mais da ordem da cultura que propriamente da biologia ou genética. “A paternidade não é apenas um ‘dado’: a paternidade se faz”, já disse o grande jurista contemporâneo, Luiz Edson Fachin em seu trabalho “A tríplice paternidade dos filhos imaginários”. Em outras palavras, é o que se apreende da teoria psicanalítica, ou seja, paternidade só existe se for exercida. É uma função. E é o “lugar do pai”, isto é, a função paterna, para além do genitor e do nome, que poderá oferecer, e que dará ao filho, biológico ou não, um lugar de sujeito.
Arpen/BR – O que mudou com a edição do Provimento nº 83/2019?
Rodrigo da Cunha Pereira – O Provimento nº 83/2019 fez alterações no Provimento 63/2017 significativas, a saber. Somente as pessoas acima de 12 anos de idade podem ter a paternidade ou a maternidade socioafetiva reconhecida perante os oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais. O oficial deverá submeter o procedimento do registro da paternidade ou maternidade socioafetiva a parecer do Ministério Público. Em caso de parecer desfavorável do Ministério Público, o procedimento será arquivado pelo oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, podendo o(s) interessado(s) suscitar(em) dúvida, ou seja, recorrer ao Juiz da Vara de Registros Públicos (vide § 2º do art. 67 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973).
Arpen/BR – De lá para cá, como você avalia a atuação dos Cartórios de Registro Civil no cumprimento do Provimento?
Rodrigo da Cunha Pereira – Avalio de forma positiva, pois ocorreu a simplificação dos procedimentos, o que acaba por exaltar a famosa frase de Ruy Barbosa de que “justiça tardia não é justiça”. A necessidade contemporânea de extrajudicialização dos processos judiciais, especificamente no que diz respeito ao Direito de Família, parece ser uma alternativa para invocar o princípio da celeridade, fruto da EC nº 45/2004. O Poder Judiciário precisa entender sua melancólica incapacidade de fazer Justiça, muitas vezes essa lentidão dos processos enfraquece e tira a esperança da parte mais vulnerável. Isto se torna mais evidente na área do Direito de Família.
Arpen/BR – Acredita que ainda há o que evoluir na questão do reconhecimento de maternidade/paternidade socioafetiva?
Rodrigo da Cunha Pereira – O ordenamento jurídico está em constante necessidade de evolução, sobretudo reforçando a laicidade estatal. Para que o Direito possa estar mais próximo do seu ideal de Justiça, faz-se necessário considerar o que a Psicanálise, principalmente pós Lacan, já desenvolveu em sua teoria sobre a paternidade. Em outras palavras, a partir do momento em que a paternidade for considerada em sua essência, desbiologizada e vista como função, o pensamento jurídico terá que se reestruturar, inclusive para dar novos rumos às ações de investigação de paternidade. E é o que parece já ter sido entendido no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Por outro lado, e paradoxalmente, o conteúdo político dessa moderna lei ainda não se efetivou de maneira satisfatória e condizente com a necessidade de milhares de crianças abandonadas e pobres no Brasil. O Governo Federal, tentando desculpar-se por isto, justifica que o problema é secular, e, portanto, uma década é pouco para a implementação de uma política mais eficaz. As crianças, além de abandonadas pelos pais biológicos e desacompanhadas psiquicamente, continuam abandonadas pelo Estado. Em outras palavras, a infância e juventude como prioridade absoluta, como reza o ECA, ainda não se efetivou e continua no papel apenas como um ideal. Passa a ser incompreensível a melancólica incapacidade e o descaso do Estado com questões tão importantes. Aliás, são mais que importantes. O desamparo e o abandono paterno são elementos fundamentais na estrutura psíquica do ser humano. É tamanha a injustiça cometida contra essas crianças que se tornaram invisíveis, lutando por uma espera de uma família. O que ocorre na prática é que este lar nunca chega, pois em processos judiciais de adoção e destituição do poder familiar, muitas vezes busca-se a família extensa, ou seja, prioriza-se o biologismo que nem sempre atende ao melhor interesse da criança e absoluta prioridade.
Arpen/BR – A facilitação do reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva mantém algum tipo de relação com os processos de adoção no Brasil? De que forma esses diferentes assuntos se conectam?
Rodrigo da Cunha Pereira – O sistema de adoção no Brasil é cruel com as crianças e os adolescentes. O aforismo de Lacan, “A mulher não existe”, pode ser ampliando também para “A criança não existe”. Elas se tornaram invisíveis e não há nenhuma política pública séria para tratá-las como verdadeiros sujeitos de direitos. Elas não fazem parte da engrenagem política. Não dão voto. Elas não têm voz nem vez. A correlação com os processos de adoção talvez esteja em uma interpretação equivocada e preconceituosa da lei, no sentido de que se deve buscar, a qualquer custo, que a criança seja adotada pela família extensa, ou seja, pelos seus parentes. Um verdadeiro culto ao biologismo, incentivado equivocadamente inclusive por dogmas religiosos. Ainda não temos um Estado verdadeiro laico. Esta procura pelo adotante “preferencial” costuma durar anos e, quando é encontrado, na maioria das vezes o parente adota não por amor, mas por culpa. O consagrado princípio constitucional do melhor interesse da criança fica longe do que seria realmente melhor para ela. Grande parte dos juízes e membros do Ministério Público ainda está paralisada na ideia de que família é da ordem da natureza, e não da cultura, ignorando toda a evolução do pensamento psicanalítico e antropológico. Isso por si só já leva o processo a atrasar anos.
Arpen/BR – Em quais outros campos do Direito de Família também poderiam ser tomadas medidas no caminho da desjudicialização?
Rodrigo da Cunha Pereira – O marco mais significativo da extrajudicialização foi a Lei 11.441/2007, que admitiu a possibilidade do divórcio e inventário extrajudicial. Penso que estamos caminhando bem. Por oportuno, no dia 26 de maio de 2020, o CNJ expediu o Provimento nº 100, dispondo sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado. Dessa forma, os cartórios de notas poderão realizar seus procedimentos a distância e por meio eletrônico, com a utilização da videoconferência e da assinatura digital. A novidade do Provimento não é exatamente sobre o divórcio ou a forma do divórcio, e sim sobre os procedimentos. Antes tínhamos que nos deslocar com as partes até o Cartório de Notas para assinar as escrituras. Hoje, os Cartórios poderão realizar esses procedimentos virtualmente. Adotou-se a era tecnológica que deve ser explorada em prol da celeridade. A vida é curta demais para se perder tanto tempo com eternos, degradantes e desgastantes processos litigiosos, que são verdadeiras histórias de sofrimento e gozo, e que fazem movimentar a máquina judiciária em razão de ressentimentos pessoais e histórias de conjugalidades mal resolvidas. Este tempo de recolhimento em nossas casas é um bom momento para repensarmos algumas práticas jurídicas e judiciais.
Arpen/BR – O Provimento nº 63/2017 do CNJ dispõe, ainda, sobre o registro de nascimento de crianças nascidas por meio de reprodução assistida. O que representa essa decisão? Quais os avanços trazidos pela publicação?
Rodrigo da Cunha Pereira – Antes do referido Provimento nº 63/2017 do CNJ, uma criança, nascida de útero de substituição, saía do hospital com a Declaração de Nascido Vivo (DNV), em nome de quem a gestou, e não de sua verdadeira mãe, o que era um empecilho ao registro de nascimento. Para evitar essas dificuldades e registrar a criança em nome da genitora, era necessário pedir autorização judicial. Isso às vezes deixava a criança sem registro por muito tempo. Essas “barrigas de aluguel”, expressão popular para designar a gravidez em útero de substituição, só podem ser feitas entre parentes até 4º grau (mãe, irmãs, tias e primas), de acordo com a Resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esse contrato é sempre tácito e nunca escrito, pois se pressupõe nessas relações familiares uma confiança que dispensa formalidades, mas não deixa de ser um contrato. Contratos de geração de filhos vão além dessas formações de famílias ectogenéticas já consideradas comuns, e cujo preconceito inicial já foi praticamente superado. O problema está nas novas configurações familiares em que o contrato para a geração de filhos ultrapassa as concepções morais tradicionais quando vêm acompanhadas de um conteúdo moral e religioso. Uma outra forma de família, que também foge dos padrões tradicionais e ganhou visibilidade em razão da internet, e com isso tem crescido muito, é a coparentalidade. Essa nova expressão designa a família parental cujos pais se encontram apenas para ter filhos, de forma planejada e responsável, para criá-los em sistema de cooperação mútua, sem relacionamento conjugal ou sexual entre os pais. É conveniente que esses contratos de geração de filhos sejam escritos, deixando regras bem claras, como o nome a ser dado à criança que gerarão, convivência, sustento, etc. É claro que essas cláusulas contratuais poderão ser relativizadas, ou mesmo modificadas em razão de uma realidade fora do planejado ou acidentes de percurso. Não descaracteriza a coparentalidade se os parceiros fizerem “inseminação caseira”, ou mesmo tiverem relação sexual com o único fim da procriação.
Arpen/BR – Como vê esta diversidade na forma de constituição de famílias e de paternidades?
Rodrigo da Cunha Pereira – Essas novas estruturas conjugais e parentais nos remetem a uma ideia de desordem da família e de que essas novas representações sociais de família produzirão filhos infelizes, desajustados, problemáticos e casais promíscuos. Na verdade, o que está em desordem, em crise, é a família nuclear burguesa patriarcal, que sobreviveu às custas da opressão e submissão da mulher, que não era considerada sujeito de desejos nem de direitos (até 1964, era relativamente capaz — Lei 4.121/62). Essa família idealizada, do passado, apesar da nostalgia que traz consigo em razão do sentimento de amparo que transmitia, não tem mais lugar em nossa sociedade. Apesar disso, a família foi, é e continuará sendo o núcleo básico da sociedade, isto é, o núcleo estruturante do sujeito.
Arpen/BR – Como avalia o papel exercido pelos Cartórios de Registro Civil na garantia da segurança jurídica desses registros de nascimento?
Rodrigo da Cunha Pereira – Avalio de forma positiva. Assim como a cidadania, a responsabilidade tornou-se uma palavra de ordem da contemporaneidade. Mais que um valor jurídico, a responsabilidade é um princípio jurídico fundamental e norteador das relações familiares e que traz uma nova concepção sobre os atos e fatos jurídicos, que está atrelada à liberdade que, por sua vez, encontra sentido na ética da responsabilidade. A garantia da segurança está ligada na responsabilidade. Aliás, a ideia de democracia está necessariamente interligada à liberdade e à responsabilidade. Uma não existe sem a outra. Quanto mais liberdade se conquista, com redução consequente do quantum despótico, mais responsabilidade se impõe a quem a exerce. Assim, pode-se dizer que se é mais livre na medida em que se é mais responsável pelos atos praticados. Portanto, responsabilidade e liberdade estão no mesmo plano axiológico. A ideia atual de responsabilidade não busca apenas a reparação para os atos do passado, mas também cumprir os deveres éticos, voltados para o futuro. Nas relações parentais, o princípio da responsabilidade está presente principalmente entre pais e filhos.
Arpen/BR – Após os três anos de atuação dos Cartórios, conforme determinado pelo Provimento nº 63/2017, quais mudanças ou melhorias deveriam ser tomadas pelo CNJ com relação aos temas abordados pelo Provimento?
Rodrigo da Cunha Pereira – Contratos de geração de filhos vão além dessas formações de famílias ectogenéticas já consideradas comuns, e cujo preconceito inicial já foi praticamente superado. O problema está nas novas configurações familiares em que o contrato para a geração de filhos ultrapassa as concepções morais tradicionais quando vêm acompanhadas de um conteúdo moral e religioso. É o caso do útero de substituição entre pessoas que não são parentes. Assim, brasileiros têm sido obrigados a irem a outros países. Talvez essa regra precise ser acrescida, além da possibilidade de inclusão da coparentalidade, como dito acima. Para uma criança, basta que tenha alguém que exerça função paterna e materna, ou seja, alguém que exerça amorosamente cuidados e coloque limites, e assim esta família estará estruturando edipicamente o sujeito. E é nesta estruturação psíquica chamada família (Lacan) que a criança vai se deparar com o desejo do outro que a constituiu e, consequentemente, se deparar com o enigma do próprio desejo, e então tornar-se sujeito. Seja lá como for, tradicional ou fora dos padrões, todas as famílias têm como função primordial ser o locus de formação do sujeito, e continua sendo o lugar seguro e de amparo que todos sonham e ninguém quer abrir mão.
Fonte: Assessoria de Comunicação da Arpen-Brasil