Mulher honesta
Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 10/6/1997
O sistema patriarcal estabeleceu, e estabelece ainda, uma relação de poder entre os gêneros, a partir da divisão sexual do trabalho. Esta dominação de um sexo sobre o outro, deixou marcas em nossa cultura que até hoje espalham seus significados e significantes, para usar uma expressão de Saussure e Lacan. Assim, as palavras vieram significando comportamentos, condutas e, conseqüentemente, o Direito absorvendo isto, passou a expressá-las em seus textos legislativos.
Ainda vigora no Código Civil Brasileiro, o art. 1744, III, que determina como uma das causas de deserdação, a “desonestidade da filha que vive na casa paterna”. É que para o Direito, a mulher honesta não significa(va) mulher honesta, isto é, não é indicativo da honestidade da mulher, no mesmo sentido em que o é para o homem. Honesto é aquele homem que cumpre seus deveres, paga suas contas em dia etc etc. Nos costumes, absorvido pelo Direito, honesta é aquela mulher que tem sua sexualidade controlada pelo marido ou pelo pai. Pouco importa se ela é cumpridora de seus deveres, se paga suas contas em dia. Os dicionários jurídicos no Brasil registram que honesta, é a mulher que tem recato, por seus atos de decência.
Também em sentido oposto, temos a expressão “Mulher Pública”. Significa para nós, aquela que tem uma conduta sexual duvidosa ou, alguém que faz de sua sexualidade um mercado, ou seja, uma prostituta. Entretanto, quando falamos “Homem Público”, estamos dando um sentido quase contrário, ou seja, é aquele que tem sua vida dedicada à política, ou suas atividades voltadas para a república.
Em 1977, a Lei do Divórcio (nº 6.575) substituiu a expressão desquite por separação judicial. É que a palavra desquitada carregava o peso de um preconceito que passou a designar mais que um simples estado civil. Desquitada tornou-se significado de mulher “livre” ou cuja conduta sexual era sempre colocada em dúvida. Da mesma forma, o legislador constituinte de 1988 substituiu a expressão concubinato por União Estável (art. 226) com a intenção de expurgar o preconceito sobre esta palavra.
Até o advento da Constituição de 1988, os filhos havidos de uma relação extraconjugal, não podiam ser registrados em nome do pai. Para o Direito estes filhos “não existiam”. Esta hipocrisia era sustentada em nome de uma moralidade pública e, de não se desestruturar, ou destruir, as famílias. Fazia-se então a investigação da paternidade apenas para fins de alimentos. Aliás, esta e qualquer outra ação de investigação de paternidade gira sempre em torno da conduta sexual da mulher. Interessa saber nestes processos judiciais com quem ou quantos homens ela teve relação à época da concepção do filho (investigante). Do suposto pai, pouco ou quase nada interessa de sua vida sexual. Ações desta natureza, pelo menos até o advento dos exames pelo método DNA, constituem, na realidade uma devassa na vida sexual da mãe.
Mulher à toda, mulher de rua, mulher pública, mulher honesta… começam a deixar de ter o sentido de determinação de uma conduta sexual e moral. Não deveriam, afinal, designar muito mais àquelas que não têm emprego, não tem teto, exercem função pública e pagam suas contam em dia? Estas nomeações, ou de designações, que um dia tiveram lugar para indicar um comportamento sexual ou, a pecha de um bom ou mau comportamento, já começou a transitar para um outro lugar, e veicular outros significados e significantes. Os dicionários deverão modificar seus registros e o Direito já começou a fazer as adaptações a partir dos textos normativos pós Constituição Federal de 1988. Estas mudanças têm um sentido muito mais profundo que a simples designação das palavras. É um passo adiante no entendimento das formas de dominação e controle da sexualidade de um gênero sobre o outro.