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Mal estar no casamento

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 5/7/1998

O ser humano insistirá sempre em acreditar que poderá preencher, para sempre, o vazio de sua vida. Ilusão à toa. A falta em nós é estrutural. Somos sujeitos desejantes e por isso mesmo algo em nós sempre faltará. Paradoxalmente, é exatamente isso que nos motiva viver: desejar o que não temos. Com isso, ganha o mundo do consumo, onde comprando, comprando, vamos nos enganando, sonhando nossa completude. O consumismo, como fenômeno da contemporaneidade, tem sido uma das molas propulsoras da inversão dos valores na vida moderna. Mas não podemos ser ingênuos de culpar apenas ele como o único responsável pelo culto excessivo aos valores materiais em detrimento de outros valores.

Freud, em o Mal estar na civilização, já dizia em 1930, que empregamos sempre falsos padrões de avaliação, buscando poder, sucesso e riqueza, assim como os admiramos nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. Portanto, não podemos buscar somente nos fenômenos externos, mas na sua conjugação com os da natureza humana, as transformações da vida atual, que parece inviabilizar ou dificultar as relações humanas adultas.

Por isto ou por aquilo, podemos dizer que as relações humanas não estão fáceis. Em especial a da conjugalidade, parece estar mesmo cada dia mais difícil. Aliás, nunca deve ter sido fácil, mas a resignação histórica das mulheres proporcionava a durabilidade do casamento, e às vezes a aparente felicidade do relacionamento.

É muito comum, e até natural, divergência entre o casal. Mas as separações parecem estar aumentando. Por maior identificação que tenham os parceiros, há a diferença sexual, que por si só já aponta para dois mundos diferentes, ou seja, o masculino e o feminino. A psicanalista francesa Colete Soler, em recente entrevista ao “ESTADO DE MINAS”, afirmou que jamais haverá paz entre os sexos. Mas as diferenças podem ser saudáveis. O desafio da maturidade, assim como o da democracia é conviver com elas, muito embora nosso primeiro impulso seja o de não aceitar e até mesmo afastá-las.
A dificuldade de conviver com a diferença pode remeter casais ao caminho mais cômodo, talvez o da separação. A dificuldade com a diferença pode até esconder o desejo de um pelo outro e provocar muitos desentendimentos e mal estar, possíveis geradores de sintomas revelados pelo próprio corpo através de doenças, às vezes de causas inexplicáveis e de difícil terapêutica.

Para o mal estar não há outra saída a não ser falar dele. Freud e depois Lacan, a partir do grande linguista, senão o maior, Saussure, já nos demonstraram que o inconsciente é estruturado como a linguagem e portanto estamos submetidos a ela. A partir do momento em que verbalizamos, estamos explicitando e elaborando a possível saída do mal estar e enfrentando a difícil arte da conjugalidade. Mas não é qualquer conversa. Algumas são usadas até para enganar e encobrir. A palavra deve ser aquela que se aproxima da verdade e tem dimensão de ato.

Manter um verdadeiro casamento talvez seja muito mais difícil que separar-se. Dá muito trabalho! Mas o amor é assim mesmo. Tem que ser cuidado, e para isto precisamos, inclusive, dedicar muito tempo a ele, reinventar os espaços, cuidar de si e de não invadir o espaço do outro. De qualquer forma, junto ou separado, o caminho possível para o ideal da felicidade continua sendo o da velha essência e desafio: dar e receber amor. Isto pode tornar-se viável começando por resolver o mal estar através da palavra, da elaboração pelo verbo, tal era no princípio de tudo, como nos ensina o texto bíblico: no princípio era o verbo.

 

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