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Loucura e cidadania

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 9/7/1997

O Estado, através de seu ordenamento jurídico e social, é quem prescreve as normas de inclusão e exclusão das pessoas no laço social e na categoria de cidadãos. Esta inclusão e exclusão, como demonstra a História, carrega consigo um traço ideológico que não pode mais ser desconsiderado pelo Direito na contemporaneidade, sob pena de se continuar repetindo injustiças e reproduzindo ainda muito sofrimento.

A expressão cidadania, significava originalmente, quem estava em dia com seus deveres políticos e eleitorais. Foi assim que a mulher no Brasil adquiriu sua cidadania com a Constituição Federal de 1934, quando passou a ter o direito de votar. Atualmente este conceito ampliou-se, para abranger todos aqueles que têm direito a um lugar ao sol. São os incluídos no laço social e que recebem proteção do Estado. São aqueles que têm autonomia de vontade, poder de arbítrio sobre o ir e vir e sujeito participante do processo histórico-político.

Dentre os excluídos, estão aqueles que o Direito considera que não têm capacidade para praticar atos da vida civil, ou seja, aqueles que não tem sua vontade determinada por si mesmos. São incapazes de reger sua própria vida, como por exemplo, os chamados loucos de todo gênero. Para não perdermos o fio da meada, e nos situarmos historicamente, é preciso lembrar que a mulher foi incluída pelo Direito, na categoria dos capazes, somente a partir de 1962, com a Lei 4.121.

Os loucos, para o Direito, são aqueles que não podem ser responsabilizados pelos seus atos, civil e criminalmente. Estes desarrazoados são assim considerados a partir de elementos fornecidos pelo conhecimento psi, que lhes outorga o título de interditados, ou inimputáveis. O grande jurista do início deste século, Teixeira de Freitas, foi o criador da expressão, que o nosso Código Civil adotou: loucos de todo gênero. Por ironia do destino, ele, segundo registra o Dicionário Enciclopédico Brasileiro, de Aloisio Magalhães (1955), “ao falecer estava privado da razão em virtude do excesso de estudo”.

A loucura, como o inconsciente, é a-temporal e a-espacial, atravessa o tempo e o espaço. Ela nos tem sido escancarada pelas notícias constantes de atos e crimes que nos tem deixado perplexos. Foucault, em seu livro “História da Loucura”, faz seu registro e a evolução de seu tratamento desde a idade antiga, demonstrando a relação de poder e o incômodo causado pelos desarrazoados, bem como a variação de seu conceito ao longo do tempo. Na Grécia, em Roma, na Idade Média, moderna e contemporânea, o ângulo pelo qual ela era vista, variava de acordo com o poder, a crença e os interesses diversos. Assim, eram encarcerados os heréticos, os insensatos, os feiticeiros, os leprosos e todos os que causavam incômodo. No Brasil, quem muito bem tratou deste assunto foi Machado de Assis (1839/1908), que especialmente no conto O alienista, procura o tempo todo, o delineador entre a razão e a desrazão.

A loucura interessa para o Direito, na medida em que ela é elemento determinante para a capacidade do sujeito. Capacidade para praticar atos da vida civil, celebrar contratos, enfim, saber se o sujeito tem discernimento de vontade, dentro de uma razão razoável.

O limiar do terceiro milênio tem proporcionado um repensar do estado de incapacidade das pessoas consideradas loucas. Lacan já nos disse que todo sujeito deve responsabilizar-se pelos seus atos. Com isto a possibilidade de inclusão dos desarrazoados no contexto da polis, os modelos institucionais e manicomiais estão todos sendo rediscutidos. Em 1991, a ONU lançou uma ‘Carta de princípios’ redirecionando e reavaliando o instituto da capacidade, onde passou a não recomendar internações psiquiátricas involuntárias. Os processos judiciais de interdição, atualmente, não devem mais ser periciados apenas pelo médico, mas por uma equipe interdisciplinar onde deverão estar presentes também, psicólogos e assistentes sociais.

Sinais dos tempos! Consequentemente, o Direito deverá remodelar a noção de incapacidade tradicionalmente fornecida pela psiquiatria, para saber até que ponto o sujeito poderá ser responsabilizado ou incapacitado. Afinal, já sabemos hoje dos interesses, e dos elementos ideológicos, que permeiam a história desta categoria de excluídos e, que a loucura não é o negativo, o avesso ou o contrário da razão, pois existe uma relação dialética entre estes dois estados.

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