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Josué e a imagem do pai

Ascom

Publicado no Jornal Estado de Minas no dia 18/5/1998

O filme “Central do Brasil”, de Walter Salles, além de mostrar com delicadeza a brutalidade e a dura realidade do povo brasileiro, traz-nos também à reflexão a fundamental e estruturante questão do pai.

O personagem, com o nome bíblico, Josué, é uma criança, ou pré-adolescente, que nunca conheceu seu pai, pois a mãe mudou-se do Nordeste para a cidade do Rio de Janeiro, com ele ainda no ventre. Mesmo assim, esse pai ausente se fez presente pelo discurso da mãe. O filho cresceu admirando um pai que ele nem sequer conheceu. A mãe falava bem do pai e introduzindo para o filho a imagem paterna fez presente um outro, e através de seu desejo, possibilitou que o filho se estruturasse psiquicamente. Assim, o pai falado pela mãe metaforizava o seu desejo e formava a imagem paterna. Em outras palavras, o desejo da mãe é quem determina a paternidade. Nesse sentido, podemos dizer que o filme “Central do Brasil” espelha a teoria psicanalítica de Lacan ao retratar um filho que estruturou-se e se sustenta apenas na imago de seu pai.

Todos nós precisamos de uma imagem (boa) de nosso pai para estruturarmo-nos como sujeitos. Por outro lado, não vivemos somente dessa imagem. O filme também mostra que só a imagem do pai não basta. Josué deseja o tempo todo, principalmente após a morte da mãe, conhecer o pai falado por ela. Vai atrás. Decepciona-se. O sonho é sempre melhor que a realidade. Mas definitivamente não quer viver só da imagem paterna. Para a construção do mundo real é preciso também um pouco de carne. É necessário a presença viva do pai.

Parece ter sido com essa intenção que o legislador brasileiro, no final de 1992, numa tentativa de dar pai a quem não tem, publicou a Lei 8.560/92, inspirada no Código Civil de Portugal. A partir dessa lei, todos os registros de nascimentos sem o nome do pai deveriam ser comunicados ao Ministério Público para averiguação e busca da paternidade (biológica). Portanto, o Estado incumbiu-se de procurar um pai para aqueles que não o tiveram em sua certidão de nascimento.

Mas, essa foi mais uma lei que não pegou. Talvez porque esteja aí um excesso de intervenção do Estado na vida privada dos cidadãos. Ora, há mulheres que não querem revelar o nome do genitor, ou mesmo não sabem quem ele é, como em casos de estupro, por exemplo. Entretanto, há de se indagar, se o direito de revelar, ou não, o nome do pai é da mãe ou é do filho? Certamente é muito mais do filho. Entretanto, depende da mãe, pois significa também revelar segredos de uma sexualidade, muitas vezes proibida ou condenada no campo social.

Mesmo que o pai biológico não adote o seu filho, ou seja, não assuma a paternidade ou as responsabilidades de pai, é muito importante que esse filho tenha o nome do pai em sua certidão de nascimento. Sabemos que isto não é nenhuma garantia de paternidade, assim como a certidão de casamento não garante o amor eterno. Mas o nome do pai no registro de nascimento já é um bom começo, e poderá, pelo menos, fazer nascer obrigações jurídicas, com pensão alimentícia e herança. Mas, muito além dessas questões objetivas e práticas, está o direito sagrado de qualquer pessoa saber sobre sua origem biológica e genética. Ainda que seja só para saber. Este saber poderá, certamente, ajudar o sujeito na constituição de sua identidade e de sua estruturação psíquica, como tão bem retratou o personagem Josué.

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