Golpe do baú, suggar baby e a autonomia privada aos olhos do Direito
Publicado em conjur.com.br em 23/06/2019
Golpe do baú é a expressão popular para designar as uniões conjugais por interesses econômicos e financeiros. Para evitar tais práticas é que a lei (artigo 1641, II, CC) determinou que o casamento de pessoas com mais de 70 anos só pode ser pelo regime da separação obrigatória de bens. Até 2010, esse limite era de 60 anos e, até a entrada em vigor do CC/2002, era 50 anos para mulheres e 60 para homens. A intenção da lei é proteger pessoas vulneráveis ao abuso de outrem. Entretanto, esse artigo decreta a incapacidade, ou seja, impõe uma “semi-interdição” às pessoas a partir dos 70 anos que não deveria ter lugar em um ordenamento jurídico em que a autonomia privada e a responsabilidade são a palavra de ordem, especialmente após a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que alterou substancialmente o regime das incapacidades.
Casamento e uniões estáveis por interesse sempre aconteceram e continuarão acontecendo. Como diz a música de João do Vale e Luiz Vieira, o amor é bandoleiro/ pode inté custar dinheiro; ou como disse Nelson Rodrigues, dinheiro demais compra até amor sincero. Mas bem lá no fundo, em toda união, sempre tem um interesse, nem que seja apenas o interesse em amar e complementá-lo com o interesse em constituir família e ter filhos. O sistema patriarcal sempre aprovou e incentivou e era comum esse tipo de casamento para o aumento do patrimônio dentro das próprias famílias. Aliás, casamento é um contrato para regulamentar, principalmente, aspectos patrimoniais. Assim, se das relações de afeto podem decorrer consequências patrimoniais, o importante é que as pessoas sejam livres para estabelecê-las. O problema está nas situações em que uma das partes é enganada ou não tem livre discernimento.
Uma pessoa de 20 ou 30 anos que se casa com outra que tem o dobro de sua idade, por exemplo, geralmente é vista como interesseira ou golpista, especialmente se a pessoa mais velha é quem tem dinheiro. Mas não estaria aí um par perfeito? Ele tem a maturidade, a experiência, a segurança e o dinheiro. Ela tem a juventude, a alegria e o entusiasmo próprio da idade. O amor pode nascer desses interesses. Cada um dá o que tem, e o que se quer do outro pode ser exatamente o que não se tem. Nas relações fora dos padrões não significa que não haja amor. E foi com essa clareza e por entender que as relações amorosas podem, sim, ser também um sistema de trocas que surgiu, nos últimos anos, as expressões sugar daddy e sugar baby.
Essas expressões da língua inglesa, ainda sem correspondente em português, surgiram na Califórnia em 1908 para designar o relacionamento de Alma de Bretteville (27) e Adolph Spreckels (51), e com o tempo passou a designar as relações formadas por uma pessoa mais velha com outra bem mais nova. São relações claramente baseadas em benefícios financeiros, mas que não se caracteriza como prostituição. Cada um dá o que tem. Já existem várias plataformas digitais que promovem os relacionamentos sugar. Ali, como nos aplicativos de namoro e encontros, cada um coloca o seu perfil, deixando claro que querem essas trocas, inscrevendo-se como sugar baby, sugar daddy ou sugar mommy.
O importante nestas relações amorosas, e que podem se transformar em conjugalidade, e daí decorrerem direitos, é que não haja enganação, engodo, pois poderia se caracterizar como golpe do baú. O grande problema em tal caracterização é a dificuldade de se provar o engano e a má-fé. Assim, como há um limiar tênue entre namoro e união estável, pais socioafetivos e padrasto, há também um limiar difícil de se detectar na união conjugal que foi apenas por interesse financeiro. Mas, uma vez caracterizada, terá consequências jurídicas. Em toda relação, em algum momento, um dos parceiros tem a sensação de que foi enganado, traído em seu amor. No cotidiano, quando o véu da paixão já não encobre mais os defeitos do outro, fica-se com essa. E aí Caetano Veloso tem razão: E vê só que cilada o amor me armou / Eu te quero (e não queres) como sou/ Não te quero (e não queres) como és (…). Mas Lacan quem nos salva: de nossa condição de sujeito, somos sempre responsáveis.
Para o mundo jurídico, o engano, para se caracterizar como “golpe do baú”, deve ficar bem caracterizado. E isto já foi parar nas barras do tribunal. O STJ (REsp 736.627–PR, rel, min. Carlos Alberto Menezes – 3ª T. public. 1/8/2006) e o TJ-MG (ARG: 10702096497335002 rel. Baía Borges – public. 21/3/2014), ambos usando a expressão “golpe do baú”, discutiram e se posicionaram em relação ao casamento de idosos com pessoas bem mais novas, e se isso seria mesmo um golpe do baú.
A importância da compreensão e caracterização dessa expressão popular é a proteção às pessoas vulneráveis. Claro que nem toda conjugalidade de idosos com pessoas bem mais nova tem essa característica. Como se disse, em um sistema de trocas, cada um dá o que tem. Na verdade, quem tem a intenção de aplicar o tal golpe do baú acaba fazendo-o por meio de subterfúgios e sutilezas para atingir seu objetivo, independentemente da idade. Embora não seja fácil, é possível demonstrar o golpe do baú, e aí é da análise do caso concreto que se poderá extrair as provas necessárias. Uma união cujo escopo é o golpe do baú pode ensejar uma ação declaratória de indignidade (artigo 1.708, parágrafo único, CC) para desobrigar um dos cônjuges ou conviventes/companheiros ao pagamento de pensão alimentícia, bem como para efeitos sucessórios ou até mesmo uma invalidação do contrato da conjugalidade.
A arte, a linguagem poética pode ajudar o Direito a traduzir melhor essas questões subjetivas e fazê-las emergir à necessária objetividade dos conceitos jurídicos, como na música de Othon Russo: sabes mentir/ Hoje eu sei que tu sabes mentir/ um falso amor/ abrigaste em meu coração/ sempre a iludir/ tu falavas com tanto ardor/ Dessa paixão/ Que dizias sentir/ Mas tudo acabou/ Para mim terminou a ilusão (…). E é assim que vamos rompendo as barreiras entre arte e Direito.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
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