Fraude na partilha de bens e os limites entre pessoa física e jurídica
A ideia e o propósito de se conceder às pessoas jurídicas independência, distinguindo-a da pessoa física, também tem sido objeto de uso indevido pelo cônjuge economicamente mais forte e muitas vezes mal-intencionado. É praxe corriqueira dos cônjuges e companheiros empresários não só a transferência de parte do acervo de bens do casal para a sociedade comercial, como também a aquisição de patrimônio em nome dela.
O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em Direito de Família e Sucessões, explica que ao se constituir uma pessoa jurídica, seja ela civil ou empresarial, confere-se a ela capacidade e autonomia, cuja função primordial é distanciar a pessoa do sócio, ou sócios, das atividades por ela desenvolvidas, não obstante seja(m) ele(s) os responsáveis por sua capitalização.
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“Rolf Madaleno, o primeiro doutrinador brasileiro a trazer a disregard para o Direito de Família, é enfático ao dizer que a finalidade prática da personificação da sociedade é a de estabelecer a separação do patrimônio dos sócios em relação ao seu patrimônio”, ressalta o advogado.
O advogado explica que, dessa forma, a sociedade torna-se responsável pelos atos por ela praticados e pode funcionar como uma desresponsabilização do cônjuge, pois ela serve de uma espécie de “blindagem” na medida em que acaba tornando confuso e difuso o patrimônio do cônjuge ao torná-lo duas pessoas diferentes: física e jurídica.
“Em decorrência dessa autonomia, gerencial e patrimonial, desvirtua-se a finalidade da pessoa jurídica para fins escusos, uma vez que a má gestão dos administradores, sócios ou não, responde limitadamente à esfera patrimonial da sociedade, ensejando a fraude a credores”, avalia o especialista.
Para o especialista em Direito de Família e Sucessões, o mau uso da figura societária fez surgir a necessidade de relativizar sua autonomia, dando origem à teoria da desconsideração da pessoa jurídica, ou disregard.
“Fruto da doutrina e jurisprudência, a disregard, que se desenvolveu primeiro nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha, consiste em autorizar o Judiciário, em casos de fraude, a ultrapassar os limites da personalidade jurídica das sociedades para alcançar o patrimônio dos sócios”, aponta.
Com o objetivo de “blindar” o patrimônio, com a facilidade conferida pelo véu societário, o cônjuge que visa a vantagem patrimonial esvazia ou desvia o patrimônio conjugal para “capitalização” do patrimônio societário, em detrimento do regime de bens adotado pelo casal, configurando fraude à meação, e atraindo a incidência da disregard . Nesses casos, a disregard atua de forma invertida, ou seja, a relativização da personalidade jurídica alcança o patrimônio da sociedade, usualmente chamada de desconsideração inversa.
Rodrigo da Cunha explica ainda que o ordenamento jurídico brasileiro prevê a desconsideração da personalidade jurídica no artigo 50 do Código Civil, artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, artigo 18 da Lei Antitruste e artigo 4º da Lei n. 9.605/1998, que regula os crimes contra o meio ambiente e também no CPC/2015 que têm previsão expressa nos procedimentos.
A utilização indevida da personalidade jurídica pode compreender tanto a hipótese de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ou o próprio cônjuge, quanto esvaziar seu patrimônio pessoal em nome de pessoa física, integralizando-o na pessoa jurídica, e ocultando de terceiros tais bens, ou fraudando o regime do casamento.
“Foi com essa interpretação que o Superior Tribunal de Justiça – STJ aplicou a desconsideração inversa de personalidade jurídica , alertando sobre os princípios éticos e jurídicos da própria disregard doctrine, que dentre outras premissas veda o abuso de direito e a fraude contra credores e cônjuge”, completa.