Famílias multiconjugais e o negacionismo jurídico
O artigo 226 da Constituição da República estabelece um rol exemplificativo de formas de constituição de famílias: casamento, união estável e famílias monoparentais. Se fosse taxativo esse rol estaria excluindo várias formas de famílias, e que ninguém duvida que sejam famílias, como, por exemplo, aquelas formadas apenas entre irmãos, denominadas anaparentais; famílias adotivas, socioafetivas e multiparentais. Assim como não há mais filhos ilegítimos (famílias parentais), não há famílias conjugais ilegítimas. Esta conquista histórica é fruto da evolução dos movimentos sociais, compreensão e interferência da Psicanálise e Antropologia no Direito, que nos revela que a família é da ordem da cultura e não da natureza. E assim, novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, quer queiramos ou não, gostemos ou não. Por isto a família vai transcendendo sua própria historicidade. Todas as famílias merecem o reconhecimento e a proteção do Estado.
Apesar da clareza do texto constitucional da legitimação de todas as formas de famílias, continua imperando um “negacionismo jurídico”, em relação às famílias conjugais que se constituem da forma diferente das tradicionais, especialmente as poliafetivas e as simultâneas (alguns ainda a denominam de concubinato). Não há argumento jurídico razoável que justifique a negação de direitos a estas famílias. Todos esses argumentos estão assentados na ordem moral, e não jurídica. Portanto, a única barreira para o reconhecimento jurídico destas famílias é o moralismo do intérprete da lei. Direito é também interpretação, que obviamente traz consigo forte carga da subjetividade. E é aí que mora o perigo.
O termo negacionismo foi popularizado pelo historiador francês Henrry Rousso (1944-1987) e surgiu para se referir a grupos e indivíduos que negavam o extermínio em massa dos judeus durante o regime nazista. Alegavam que isto era uma consequência natural da segunda guerra mundial. Outros exemplos, da recusa a aceitar uma realidade empiricamente verificável, é o de que o aquecimento global é uma farsa, cigarro não causa câncer, Brasil não teve ditadura; a terra não é redonda etc. É curioso observar que o negacionista entra em uma posição irracional e prefere acreditar em informações falsas, e não no conhecimento científico. Dentre as características básicas do negacionismo estão a manipulação de informações. Em síntese, o negacionismo é a escolha, consciente ou inconsciente, de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. A criação desta “realidade paralela” são motivadas por crenças religiosas, mecanismo de defesa, proveito próprio e defesa (inconsciente?) de pensamentos perturbadores. Freud já havia dito algo semelhante, o que chamou de “denegação”, para designar um mecanismo de defesa, por meio do qual o sujeito exprime negativamente uma ideia ou um desejo, cuja presença, traz-lhe algum incômodo ou medo, e por isto o recalca (Cf. meu Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. 2ª ed. Saraiva, pág. 241).
Os juízes são imparciais, mas não são neutros. Ao proferirem uma decisão, dentro do seu poder de arbítrio, esta subjetividade, que se compõe da sua história pessoal, sua formação psíquica, religiosa, moral, sua concepção de vida, suas idiossincrasias, está sempre presente. O bom juiz, ou, o juiz ideal é aquele que sabe separar sua visão particular do mundo, sua visão religiosa, dos elementos jurídicos. Não é fácil. Há razões inconscientes (se é que o inconsciente tem alguma razão), que em grande parte das vezes não são do nosso domínio, mas estão ali presentes e determinando esses julgamentos. Não há como ficar livres disto. Seria como desumanizar os julgadores e colocá-los no lugar narcísico de deuses ou semi-deuses. Mas é possível, a partir desta tomada de consciência, tentar separar o joio do trigo. Em outras palavras, distinguir moral de ética. Missão difícil, mas necessária para que tenhamos decisões mais justas, especialmente em Direito de Família.
Se o Estado é laico, pelo menos teoricamente, desde a primeira Constituição da República (1891) não se pode, em nome da moral particular do julgador, deixar que os dogmas religiosos e culturais ocupem o lugar da justiça e suplantem a ética, que deve ser universal e pairar acima dos valores morais estigmatizantes. A maioria dos julgamentos nos processos em que se reivindica direitos para uma família constituída simultaneamente à outra, tem esbarrado e se sustentado em concepções muito mais morais do que jurídicas, repita-se. E tem sido em nome desta moral, e dos bons costumes, que milhares de famílias continuam condenadas à invisibilidade jurídica e social. Assim como as mulheres e os filhos havidos fora do casamento foram tratados até recentemente, elas ainda ocupam esse “não lugar”. Muito mais fácil e cômodo deixá-las assim. Se são invisíveis juridicamente elas não existem, e não vão incomodar a moral vigente. Que moral é essa que exclui, retira direitos e dignidade de quem constituiu uma família diferente dos padrões tradicionais? Foi em nome desta moral, inclusive religiosa, que o Estado juiz já fez e continua fazendo atrocidades e desumanidades. Verdadeiras violências, principalmente, contra as mulheres. Meu Deus! Até quando vamos continuar repetindo estas injustiças históricas? Não podemos parar de nos perguntar o porquê destes julgamentos que continuam semeando injustiças.
No caso das famílias simultâneas, o temor maior é que, ao ganharem visibilidade jurídica, elas significarão uma afronta à monogamia. Então está na hora de pensarmos sobre a monogamia e ponderá-la com outros valores e princípios constitucionais, expressos e não expressos, inclusive e principalmente, com o macro princípio da dignidade humana, que paira sobre todos os outros princípios, e é o vértice do Estado democrático de Direito. Porque as pessoas têm tanto medo da não monogamia? Qual é o limite entre público e o privado? Até onde o Estado pode proibir, ou determinar, que o Desejo seja dirigido a uma só pessoa? E quem disse que monogamia não pode conviver com a não monogamia? A vida como ela é nos mostra que milhares de famílias se constituem assim, fora dos padrões monogâmicos. Elas existem, mas não se pode dizer juridicamente que existem. Eis a hipocrisia jurídica semeadora de injustiças e exclusões. A esperança por um mundo mais justo, é que os julgamentos sobre as famílias multiconjugais se pautem pela ética, como exemplificativamente, em 2008 o TJ-MG se posicionou, e resume toda esta história: “(…) negar a existência de união estável quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder.
Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar a irresponsabilidade e enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor de outro” (TJ-MG. Ap. Civil 1.0017.05.016882-6/003. Relatora: desembargadora Maria Elza, publicação em 10/12/08).
A negação da existência da realidade fática das famílias simultâneas, e poliafetivas, tem levado os julgadores a interpretarem o Direito dentro de um negacionismo e de um fetichismo da lei. Não precisam ter medo. Assim como as famílias homoafetiva, não afrontam e não eliminam as heteroafetivas, as não monogâmicas não eliminam ou excluem as monogâmicas. Família não é monopólio do casamento, da heteroafetividade e da monogamia. Em um Estado Democrático de Direito todas as formas de família podem coexistir. E a partir do momento em que se deixa de lado o negacionismo jurídico, em relação às famílias que se constituem de formas diferentes das tradicionais, e passar a respeitar as diferenças e o desejo alheio, e não excluí-las, estaremos na direção do ideal de justiça desejável, e garantindo o grande vetor do Direito Privado, que é o respeito à autonomia da vontade.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).