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Falar bonito, inclusive no campo jurídico, é falar simples

Ascom

Rodrigo da Cunha Pereira
6 de outubro de 2024

Artigo publicado no Conjur

O principal instrumento para a aplicação do Direito é a palavra. O Direito é, também, uma ciência da palavra. Um eterno exercício de argumentação e contra-argumentação. É na palavra, e pela palavra, que se estrutura a linguagem, que é o sistema por meio do qual, nós humanos, vamos comunicando ideias e sentimentos, seja via escrita, fala ou outros sinais que a traduzem.

O poeta mexicano Octávio Paz (1914-1998), prêmio Nobel da Literatura (1990) ao afirmar que o homem é homem graças à linguagem, estava sintetizando o que a psicanálise já havia decifrado: nos constituímos pela linguagem, é através dela que nos tornamos sujeitos e nos humanizamos. É também pela linguagem que o inconsciente se manifesta (atos falhos, lapsos etc.). Em linguagem lacaniana: o inconsciente se estrutura como linguagem.

Cada campo do conhecimento constrói seu próprio vocabulário. Os termos técnicos são importantes e ajudam a traduzir e especificar determinados conteúdos e conceitos. E é por isso que a linguagem jurídica se utiliza de uma terminologia própria e, na maioria das vezes, imprescindível. Há, no Direito, diversas linguagens, que são próprias e específicas de cada área: linguagem de tabelioa, de delegacia, de petição, de doutrina, de julgamentos, de pareceres etc.

Cada uma delas traz consigo as suas especificidades, características e peculiaridades necessárias, assim como cada ramo do Direito tem expressões próprias e especificas, como o Direito Penal, Societário, Previdenciário, Administrativo, Tributário, Família e Sucessões, Processual etc.

O Direito de Família é o ramo que mais tem alterado sua linguagem. Especialmente a partir de 1997 com a criação do Instituto Brasileiro de Direito de Famílias (IBDFAM), ele vem sofrendo uma revisão geral, alterando sua estrutura, conceitos, terminologias:

“Hoje há uma nova gramática e um novo vocabulário, com novos adjetivos, novos substantivos, novas plurais, novos coletivos, novas locuções, e novos verbos. Em substituição às palavras mortas, outras novas vão surgindo. Esse fenômeno também ocorre para marcar uma nova era nas relações familiares e no Direito de Família. Aquilo que era considerado crime, deixou de sê-lo; o que nem se imaginava viesse tipificar uma conduta criminosa, de repente vai para o catálogo de Código Penal, como. por exemplo, sedução e bullying” (Cf. SEREJO, Lourival in Preâmbulo do meu Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões – Ilustrado – Ed Foco).

Em outras palavras, a linguagem é dinâmica e deve acompanhar e traduzir o seu tempo. Algumas mudam de significado, envelhecem, perdem a força: mulher honesta, regime dotal, bens parafernais etc. Outras surgem para nomear novos fenômenos jurídicos, mudar o significante e ressignificar as coisas: alienação parental, conjugalidade, multiconjugalidade, parentalidade, multiparentalidade, socioafetividade, homoafetividade, homoparentalidade, coparentalidade, pessoa com deficiência, testamento vital, autocuratela etc.

Língua dos cartórios

Alguns ramos do Direito resistem, e insistem, em ficar parados no tempo, continuando com uma linguagem antiga, antiquada, como se vê na linguagem dos tabelionatos: “Saibam quantos este virem que no ano de dois mil e vinte e quatro, aos quatro de outubro, nesta cidade de… na sede deste cartório…”

Alguns ainda usam “… na data x, y do ano de nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo”. Não cabe mais na contemporaneidade essa linguagem e estrutura de texto. Ela se tornou totalmente inadequada e não condiz com o nosso tempo. Porque os cartórios ainda usam essa linguagem? Certamente ela é incompreensível para a população em geral, e para nós do mundo jurídico ela é, no mínimo antipática e pernóstica. É necessário e urgente, atualizá-la, simplificá-la.

A linguagem rebuscada e cheia de palavras difíceis serve para quê e a quem? O uso desse palavreado em um discurso, oral ou escrito, além de diminuir o alcance de sua compreensão, certamente é um exercício de poder e um desfile narcísico (cf. O Verbete Narcisismo no meu Dicionário). Assim, estabelece-se uma inacessibilidade a determinados grupos de pessoas.

Obviamente que o discurso jurídico prescinde de expressões técnicas, que são fundamentais para traduzir determinados conteúdos. Mas isso não significa, ou autoriza, o uso de uma linguagem inacessível à maioria das pessoas.

Quanto mais rebuscada a linguagem jurídica, menos compreensível ela fica, e mais excludente ela se torna. O Direito é um instrumento ideológico, de inclusão e exclusão de pessoas no laço social, não apenas pela classificação moral de legitimidade ou ilegitimidade de determinadas pessoas ou categorias, mas também pelo uso de sua linguagem inacessível à maioria da população.

Falar e escrever bonito, inclusive no campo jurídico, é falar simples, sem rebuscamento, indo direto ao ponto. O objetivo da linguagem é comunicar e se tornar acessível a maior número de pessoas. Aí reside o seu poder. Linguagem rebuscada é a linguagem do poder. Não é preciso “falar por meio de termos” para demonstrar erudição.

Não é necessário, por exemplo dizer “abscôndito” para indicar interpretações não óbvias em um texto. Melhor dizer que há um sentido oculto, velado. A simplificação da linguagem jurídica é, também, uma forma de democratização do Direito e inclusão social.

Pacto nacional

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) estabeleceu em novembro do ano passado o Pacto Nacional do Judiciário pela linguagem simples (Cf. Portaria 351/2023 e Portaria143/2024). Certamente essa campanha, liderada pelo ministro Luís Roberto Barroso, já é uma das marcas significativas de sua gestão na presidência Supremo Tribunal Federal.

Precisamos entender que a linguagem boa é aquela que é simples, objetiva, direta, sem rodeios, sem palavras difíceis. A OAB e o Ministério Público deveriam, também, estabelecer atos normativos, e estímulos a esta simplificação, inclusive para elaboração de textos e petições menores, mais sintéticos. O mundo jurídico seria melhor e mais ágil.

No mundo contemporâneo, em que o Judiciário vive um quadro caótico por estar abarrotado de processos, e em que as pessoas leem cada vez menos, não cabe mais textos extensos, prolixos e palavras desnecessárias. Afinal, o caminho da simplicidade pode ser o caminho da sabedoria. Carlos Drummond de Andrade já havia cantado essa bola: escrever é a arte de economizar palavras.

Rodrigo da Cunha Pereira
é advogado, doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), autor de vários livros e trabalhos em Direito de Família e Psicanálise e parecerista.

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