Fonte: IBDFAM
Imagem de Souvick Ghosh por Pixabay
O Projeto de Lei 3.369/2015, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-BA), dividiu opiniões e suscitou calorosos debates entre parlamentares nesta semana. O texto dispõe sobre a criação de um Estatuto das Famílias do Século XXI, dando conta dos novos formatos adquiridos pela instituição na contemporaneidade.
A proposta é resumida em um único artigo: “São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas.”
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei seria colocado em votação nesta quarta-feira, 21 de agosto, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), com relatoria do deputado Túlio Gadêlha. Acabou suspensa pelo presidente da Comissão, o deputado Helder Salomão, após ser alvo de boatos e interpretações distorcidas, que abarcam temas polêmicos, como incesto e poliafetividade.
Em nota de esclarecimento, Helder Salomão lembrou que o processo legislativo existe “para que os textos propostos passem pelo crivo do contraditório e sejam amadurecidos”. O comunicado finaliza com o anúncio da retirada do projeto da pauta, a pedido do relator Túlio Gadêlha, “para aprimoramento de sua redação por meio da elaboração de substitutivo”. Leia a nota na íntegra.
Projeto é oportuno e objetivo, segundo advogado
Diretor nacional do IBDFAM, o advogado Marcos Alves da Silva afirma que trata-se de uma proposta “eloquente por sua concisão”. “Ao se condensar em um único dispositivo, está a afirmar que, no âmbito das relações coexistenciais fundantes da dimensão humana – o das famílias –, a intervenção regulatória do Estado deve ser reduzidíssima e o campo de liberdade deve ser maximizado”, comenta.
“A autodeterminação das pessoas deve prevalecer e preponderar no âmbito existencial e não a atividade normativa do Estado. Este é um recado simbólico a partir da forma, isto é, da brevidade e da contundência propositais tão evidentes no Projeto de Lei. Ao não dizer muito, diz tudo que pretendia”, afirma Marcos Alves.
Ele lembra, contudo, que esse é um projeto datado: foi elaborado em 2015 para contrapor-se à tentativa de se instituir um conservador Estatuto da Família – não confundir com o Estatuto das Famílias formulado pelo IBDFAM, que segue linha progressista semelhante ao Estatuto das Famílias do Século XXI.
Segundo o advogado, mais do que um projeto com viabilidade de ser aprovado, trata-se de uma bandeira de oposição no refluxo das tendências progressistas da sociedade brasileira. “Tendo em conta a composição conservadora do Congresso Nacional, na conjuntura atual, não enxergo qualquer viabilidade de aprovação de Projeto de Lei promotor de liberdade, quando, em verdade, a tendência segue rumo a um moralismo sem precedentes na história recente do País”, avalia.
Uniões paralelas e poliafetivas
Autor do livro “Monogamia: sua superação como princípio estruturante do Direito de Família”, Marcos Alves fala sobre a possibilidade de avanços no tratamento das uniões paralelas caso o Estatuto entrasse em vigor. Ele lembra que tais relacionamentos, em sua maioria, são frutos não da liberdade, mas da dominação masculina.
“O grave é que, em nome da regra da monogamia, muitas mulheres que durante longos anos criaram filhos e estruturaram suas famílias, por não se enquadrarem no standard, são colocadas no campo da invisibilidade jurídica por força de concepções moralistas travestidas de juridicidade”, analisa. “Assim, pode ser que, por via transversa, o Estatuto das Famílias do Século XXI venha tutelar especialmente aquelas que permanecem, ainda hoje, à margem do mundo do Direito.”
A medida asseguraria, ainda, a liberdade das relações conjugais baseadas no poliamor, segundo Marcos Alves. Para ele, o não reconhecimento desses formatos de união no ordenamento jurídico brasileiro se assemelha à discriminação das conjugalidades homoafetivas, registrada até outrora.
“Famílias assim constituídas (a partir de uniões poliafetivas) existem. Não é possível se cogitar da proibição de constituição de conjugalidade em trio ou mais pessoas. Isto é, ninguém pode ser criminalizado por estabelecer uma família desta forma ou de outra qualquer. Outro passo, todavia, é reconhecer eficácia jurídica a esse tipo de núcleo familiar”, defende o advogado.
Boatos sobre legalização do incesto
O teor progressista do PL 3.369/2015 lhe acarretou ampla variedade de críticas, vindas em especial da ala evangélica na Câmara e de demais líderes conservadores. Multiplicaram-se, ao longo da semana, os boatos de que o projeto promoveria a legalização do incesto. O texto não cita, contudo, o artigo 1.521 do Código Civil, que proíbe o casamento entre pais e filhos, tampouco fala em alterá-lo.
Marcos Alves nota que o Projeto de Lei suscita uma discussão sobre o incesto, mas adverte que o assunto não pode ser tratado sem amparo na antropologia, sociologia e psicologia. “Não há campo para tratar com o mínimo de ponderação tema tão candente”, afirma.
“A afirmação pública que vai popularizar-se é, sem sombra de dúvidas, a da perversão sexual, do incentivo à pedofilia e congêneres. Quem não consegue antever isso, certamente não vive no Brasil nos últimos tempos”, aponta o advogado.
Estatuto preencheria lacunas do ordenamento jurídico brasileiro
Apesar das controvérsias e do momento de avanço do conservadorismo, Marcos Alves acredita que a instituição do Estatuto das Famílias do Século XXI seria benéfica. Afinal, promoveria a inclusão, trazendo para o campo da tutela jurídica muitos ainda desprotegidos e vítimas de preconceito.
“Seria uma afirmação da alteridade, do diferente, da possibilidade de serem reconhecidas em sua dignidade aquelas pessoas que não vivem no quadro da ‘normalidade’ ditada por uma maioria que pretende estender seu estatuto moral, religioso ou filosófico para todos, dificultando a construção de uma sociedade onde caibam todos”, aponta.
Para o advogado, seria como que uma releitura do princípio da pluralidade das entidades familiares inscrito no artigo 226 da Constituição. “O Estatuto seria a reafirmação expressa e incisiva do princípio constitucional em uma lei ordinária. Neste sentido, cumpriria importante papel consagrador de avanços na inclusão de famílias socialmente reconhecidas, mas, que hoje estão completamente à margem da tutela jurídica.”
Contudo, ele não vislumbra sua aprovação, ainda que com futuras alterações, dado o nosso atual contexto político. “Temo que a retomada desse Projeto de Lei, nesse momento, traga o resultado diametralmente inverso daquele que é o seu propósito”, avalia Marcos Alves. “O problema é ser apresentado em um presente que evidencia marcantes traços fascistas. Por outro lado, é sempre bom ver os arroubos dos amantes da liberdade, para não descrer de vez nas possibilidades do amanhã”, assinala.
Presidente do IBDFAM ressalta laicidade do Estado
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do IBDFAM, salienta que pressupostos religiosos não podem barrar avanços na área de Direito das Famílias. “Em um Estado que se diz laico, não se pode determinar como as pessoas devem constituir sua família, daí a inovação da proposição legislativa, vez que contempla as variadas concepções. No princípio da dignidade, vértice do Estado democrático de Direito, deve-se pressupor a mais ampla liberdade nas relações privadas não patrimoniais”, defende.
“Reconhecer tais direitos de várias concepções familiares não afronta a ética. Pode até ir contra a moral religiosa estabelecida, mas não contra a ética. Aliás, será contra a ética e contra os princípios constitucionais se não respeitar a liberdade dos sujeitos de estabelecerem suas famílias como quiserem, afinal se isto não fere direitos de terceiros, não há porque não se reconhecer juridicamente tais famílias”, conclui Rodrigo da Cunha.