O divórcio direto é permitido no ordenamento jurídico brasileiro há uma década. Com a promulgação da Emenda Constitucional 66, em julho de 2010, caiu em desuso o instituto da separação judicial no Brasil. A medida pôs fim a longos prazos para dissolução do casamento civil – que só era possível após um ano de efetiva separação ou caso fosse comprovado o fim da união há pelo menos dois anos.
A EC 66/2010 foi concebida pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, em parceria com o então deputado federal Sérgio Barradas Carneiro. Quando promulgada, beneficiou, de imediato, milhares de brasileiros que se separavam ou tinham processos pendentes, diminuindo a litigiosidade e ajudando a desafogar o congestionamento no Poder Judiciário.
Há 10 anos, a emenda pôs fim à discussão sobre a qual dos ex-parceiros cabia a culpa pelo término do relacionamento, informação de pouca importância para a Justiça. Até aquela época, as pessoas ficavam impedidas de se casar novamente até que o processo chegasse ao fim, restando a união estável como única opção para muitos. Também passou a ser possível que apenas um cônjuge manifeste seu desejo para o rompimento do vínculo, ainda que a outra parte não esteja de acordo.
Interferência religiosa no Estado
Para o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM, a EC 66/2010 representou o coroamento de uma luta histórica pelo divórcio no Brasil, que durou quase dois séculos. O jurista opina que o Estado deve interferir cada vez menos na vida e na autonomia privada dos cidadãos.
“O divórcio era dificultado devido aos resquícios da interferência religiosa no Estado. O movimento contrário (ao divórcio direto) apregoava o fim da família, o que não aconteceu, nem vai acontecer. A família mudou, sim, mas não está em desordem; muito menos o divórcio é culpado ou responsável por essas transformações”, destaca o advogado.
Segundo Rodrigo, a emenda foi fruto do amadurecimento da sociedade e da evolução do pensamento jurídico. “As pessoas estão mais livres para estabelecerem seus vínculos de afeto, amorosos e conjugais. Isso significa a vitória da ética sobre a moral, do Direito sobre a religião, do princípio da liberdade dos sujeitos de dirigirem a própria vida sem a indesejada intervenção do Estado. A família agora ficará melhor, com maior liberdade dos cônjuges de estarem casados ou não.”
De acordo com o especialista, a tendência evolutiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais é de que o Estado interfira cada vez menos na vida particular e na intimidade das pessoas. “Concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada”, frisa.
Direito potestativo
A EC 66/2010 firmou o entendimento do divórcio como um direito potestativo, ou seja, basta que apenas um dos cônjuges manifeste seu desejo para que seja decretado, sem a necessidade de citação do outro. A emenda passou a ser citada em diversas decisões que, nestes 10 anos, permitiram o divórcio unilateral.
A possibilidade também encontra respaldo no Novo Código de Processo Civil – NCPC (Lei 13.105/2015). Para Rodrigo da Cunha Pereira, uma das grandes inovações processuais trazidas por essa legislação foi o chamado julgamento antecipado parcial do mérito, insculpido nos incisos I e II, do artigo 356.
“Por meio dessa técnica processual, onde há fragmentos para o julgamento da causa, passa a ser faculdade do juiz decidir parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados (ou parcela deles) mostra-se incontroverso e/ou estiver em condições de imediato julgamento, em virtude da desnecessidade de produção de outras provas ou da revelia, em que se reconheça a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e o réu não tenha requerido a produção de provas (NCPC, arts. 344, 349, e 355, I e II)”, explica Rodrigo.
No ano passado, o IBDFAM também participou da elaboração do Projeto de Lei do Senado 3.457/2019, apresentado pelo então senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), que permite a um dos cônjuges requerer a averbação de divórcio no cartório de registro civil mesmo sem necessidade de qualquer concordância. Caso aprovada a proposta, tal possibilidade ganharia uma previsão expressa em lei.
Entre outras questões relacionadas aos divórcios que ainda necessitam de enfrentamento no ordenamento jurídico brasileiro, o advogado ressalta uma de suas consequências desse ato jurídico: a partilha de bens. “É preciso ainda criar mecanismos jurídicos que ajudem a dar celeridade ao partilhamento de bens do ex-casal, que dura anos para ser concluída”, opina.
Pandemia acirrou conflitos entre casais
Com a quarentena e o isolamento social, a pandemia do coronavírus fez crescer a busca por divórcios em todo o mundo. “Todos estamos sendo obrigados a nos depararmos com nós mesmos e com o outro, já que tem sido inevitável viver sob o mesmo teto neste momento, para o bem e para o mal. Afinal, é na intimidade das famílias que eclodem os maiores conflitos”, avalia Rodrigo da Cunha Pereira.
Segundo o advogado, os casais foram colocados em teste de tolerância, compreensão e compaixão. “No silêncio deste enclausuramento nos deparamos com nossa finitude, nossos desejos mais indesejáveis, inquietações e desamparo. É também tempo de espera de uma vida com novos valores éticos. A espera, mesmo forçada, serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso e determinante.”
Ele ressalta que têm sido diversas as repercussões da pandemia no Direito das Famílias. “Foi necessário adaptar, por exemplo, a prisão domiciliar para devedores de alimentos, a convivência familiar com filhos pensando no melhor interesse da criança e até usando as tecnologias para não suprimir a convivência”, cita Rodrigo.
Divórcios virtuais
“As relações familiares são as mais intrincadas e complexas. É desta intimidade que eclodem os maiores conflitos, como já bem disse Freud. Com a pandemia, nossa rotina foi virada de cabeça para baixo, e isto trouxe grandes repercussões ao Direito de Família e Sucessões, nos obrigando a utilizar ferramentas tecnológicas para adaptação da nova realidade social subjacente”, avalia o presidente do IBDFAM.
Para adequar a crescente busca por divórcios à nova realidade, em que o distanciamento social é a principal medida contra a proliferação da Covid-19,o encaminhamento desses processos por meio digital foi incorporado às possibilidades do ordenamento jurídico brasileiro por meio do Provimento 100, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
“Foi um avanço que, dentre outras providências, possibilitou o divórcio virtual em todo o território nacional, por meio de atos notariais eletrônicos através do novo Sistema e-Notariado. Acredito que a medida veio para ficar, devido à necessidade de adaptação que o tempo nos obriga”, opina Rodrigo da Cunha Pereira.
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