O Dicionário de Direito de Família e Sucessões, do advogado Rodrigo da Cunha Pereira, reúne mais de mil verbetes. Conheça o significado do verbete “Gozo”.
GOZO [ver tb. clínica do direito, gozar, pulsão] – Do latim gaudium, satisfação, prazer. Jouissance, no francês; genuss, alemão; en‑joyment, no inglês. A expressão gozo surgiu no século XV para nomear a ação de fazer uso de um bem e retirar dele as satisfações proporcionadas por ele. Foi aí que ele ganhou dimensão jurídica, vinculando‑se à noção de usufruto, que é o direito de gozar de um bem. Em 1503, a expressão foi enriquecida, ganhando uma dimensão hedonista, e traduzindo‑se a partir de então e também como prazer, alegria, bem‑estar e volúpia (ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 299).
Juridicamente, designa o desfrute da coisa ou do bem, mas preservando sua essência. Lacan, partindo da observação de processos judiciais, levou esta expressão para a psicanálise, aprofundando o seu sentido. Com a resignificação dada pela psicanálise ela pode ser trazida ao Direito de Família para entender a estrutura dos eternos e degradantes processos judiciais litigiosos. Notadamente, nestes processos pode‑se compreender o significado mais profundo desta expressão, que envolve uma satisfação pulsional e o seu paradoxo com o prazer e o desprazer.
O litígio é uma forma de não se separar e as partes permanecem unidas pelo ódio, pelo gozo com o sofrimento. O ódio une mais que o amor. Este gozo, por meio do litígio judicial traz consequências nefastas e destrutivas. É neste sentido a afirmação de Lacan “o gozo tem apetite de morte”.
Goza‑se com o prazer, mas também com o sofrimento. Geralmente este gozo é inconsciente, e na maioria das vezes não se percebe o mal que faz a si mesmo, ao outro cônjuge e aos próprios filhos. Tudo isto em nome da busca por direitos, em que cada uma das partes está sempre convencida de que está com a razão e a outra quer lesá‑la em seus direitos. Este “assujeitamento” ao gozo é a alienação do sujeito, cuja teia foi tecida por ele mesmo em sua cadeia de registros inconscientes, ou seja, das tramas do desejo.
Uma das grandes contribuições da Psicanálise à prática jurídica, é que ao nos revelar uma outra realidade, que é psíquica, desvenda uma subjetividade e razões inconscientes (se é que o inconsciente tem alguma razão) que faz quebrar uma máxima jurídica: o que não está nos autos não está no mundo. Embora não esteja ali no mundo objetivo dos autos, as razões inconscientes e o gozo estão presentes, perpassando a cena objetiva do processo e dando ao mundo dos autos um destino muito diferente daquele que ele teria se estivessem presentes apenas os aspectos objetivos. Ao trazer para a consciência do operador do Direito esta outra cena, tem‑se a possibilidade de uma conduta mais ética, com o simples fato de não nos permitirmos ser instrumentos do litígio e não contribuirmos para o assujeitamento das partes àquele gozo.
Direito e Psicanálise se encontram na relação do gozo e a lei. Uma das funções do Direito é barrar o gozo, ou seja, colocar limites na tendência do homem a fazer do outro o objeto de suas pulsões destrutivas. Portanto, o Direito lida também com o gozo. Lacan, em seu Seminário 20, faz esta conexão Direito, gozo e Psicanálise: Esclarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto – é uma noção de direito, não é? reúne numa palavra o que já evoquei em meu seminário sobre a ética, isto é, a diferença que há entre o útil e o gozo (…) O usufruto quer dizer que podemos gozar de nossos meios, mas que não devemos enxovalhá‑los. Quando temos o usufruto de uma herança, podemos gozar dela, com a condição de não gastá‑la demais. É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo (LACAN, Jacques. O seminário, livro 20 – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 11).