Descomplicando o Direito de Família e Sucessões em tempo de pandemia. Testamento hológrafo e o fetiche das formalidades
Artigo publicado na AASP
Por Rodrigo da Cunha Pereira
As relações familiares são as mais intrincadas e complexas. É desta intimidade que eclodem os maiores conflitos, como já bem disse Freud. E o novo coronavírus está colocando à prova estas relações familiares, já que o isolamento social tem obrigado as famílias a vivenciarem suas intimidades em um mesmo espaço físico continuamente.
Querendo ou não, todos estamos sendo obrigados a nos depararmos com nós mesmos e com o outro, já que tem sido inevitável viver sob o mesmo teto neste momento, para o bem e para o mal.
Nossa rotina foi virada de cabeça para baixo, e isto traz grandes repercussões ao Direito de Família e Sucessões. Estamos todos em teste de tolerância, compreensão e compaixão. No silêncio deste enclausuramento nos deparamos com nossa finitude, nossos desejos mais indesejáveis, inquietações e desamparo. É também tempo de espera de uma vida com novos valores éticos. A espera, mesmo forçada, serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso e determinante.
A intolerância e incompreensão já foi parar nas barras dos tribunais para suspender “visitas” de filhos de pais separados. Isto demonstra que o modelo de convivência familiar, tal como praticado, está em xeque, pois, de fato, a cultura da guarda compartilhada ainda não foi implementada no Brasil.
Pensões alimentícias estão sendo revisadas, diante do impacto econômico desta pandemia. A violência doméstica aumentou em 9% na segunda quinzena de março/2020, quando a quarentena efetivamente começou.
Dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos revelaram, também, que o canal voltado à proteção de crianças, idosos, LGBTs e outras minorias registrou crescimento de 23,5% nas denúncias, passando de 17 mil para 21 mil no mesmo período.
Se o exercício do Direito de Família e Sucessões já vinha se modificando desde a fundação do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com a introdução do afeto como valor e princípio jurídico norteador de todas as relações familiares, inclusive questionando a cultura adversarial da advocacia, agora, mais do que nunca, ela se encaminhará cada vez mais para a cultura da prevenção e em busca de novos métodos de resolução de conflitos.
Todos teremos que nos reinventar em nosso exercício profissional, especialmente na advocacia. A vida é curta demais para se perder tanto tempo com eternos, degradantes e desgastantes processos litigiosos, que são verdadeiras histórias de sofrimento e gozo, que fazem movimentar a máquina judiciária em razão de ressentimentos pessoais e histórias de conjugalidades mal resolvidas.
Este tempo de recolhimento em nossas casas é um bom momento para repensarmos algumas práticas jurídicas e judiciais. Por exemplo, é preciso entender de uma vez por todas, para o bem das crianças e adolescentes, que enquanto a mãe disser “Eu deixo o pai visitar o filho”, ainda não temos guarda compartilhada. O melhor para os filhos é conviverem, em uma relação de igualdade, com ambos os pais, salvo situações excepcionais.
O filho não pode ser transformado em moeda de troca do fim da conjugalidade, que quase sempre deságua na perversa prática de alienação parental. Em Direito das Sucessões, deveríamos implementar em nossa cultura jurídica a saudável prática de fazer e incentivar testamentos, como parte de um planejamento sucessório, ou não. Isto pode evitar décadas de litígio judicial. Atualmente, apenas 8% das sucessões hereditárias são feitas com testamentos.
Ninguém gosta de falar de testamento, pois a ele está ligada a ideia de morte, mesmo sendo a única certeza da vida. Mas neste momento que o fantasma da morte bate à nossa porta, é uma oportunidade de olharmos para ela e também para os testamentos. Viveríamos muito mais felizes se parássemos de negar a morte.
Lembrar que podemos morrer amanhã nos remete a uma outra dimensão psíquica, que é muito mais saudável do que a denegação da morte. Desta forma, entenderemos melhor a mensagem do Renato Russo, em sua música “Pais e Filhos”: “É preciso amar as pessoas/Como se não houvesse amanhã […]”. Em um testamento é possível fazer disposições não patrimoniais, o que tem sido mais comum no Direito americano, e que denominam de testamento ético.
Neste momento em que a vida de cada um de nós pode ser encurtada pelo inimigo invisível que provocou esta pandemia, muitas pessoas têm tomado atitudes que vinham adiando há muito tempo: elaborando contrato de união estável; certamente estão amadurecendo a ideia de se divorciar depois da quarentena por estarem se deparando com a infelicidade conjugal; têm sido uma prática no Brasil as Diretivas Antecipadas da Vontade, mais conhecidas como testamento vital; com a evolução da engenharia genética, proporcionando a formação das famílias ectogenéticas, muitos têm feito testamento genético, estabelecendo instruções no sentido de como o material genético criopreservado pode ou deve ser utilizado ou descartado depois de sua morte.
Embora os prazos processuais estejam suspensos até 30/4/2020 por decisão do CNJ e STF, os cartórios não pararam por completo. O CNJ expediu vários atos normativos regulamentando os serviços cartoriais (Provimentos nº 91, nº 93, nº 94 e nº 95 e Portaria Conjunta nº 953 e nº 960 PR/2020, todas de março deste ano) neste período de pandemia.
A maioria dos cartórios fizeram adaptações para continuarem prestando seus serviços, inclusive expedição de certidões eletrônicas de nascimento, divórcio, etc. Mas o mais espantoso, embora necessário, é a regra estabelecida no Provimento nº 93 do CNJ autorizando sepultamentos sem prévio registro do óbito.
Espantoso pois a previsão do número de mortes pela Covid-19 deve ser tão catastrófica que não será mesmo possível que os cartórios de registro civil de pessoas naturais consigam atender a demanda para todos os óbitos a tempo do sepultamento.
Está na hora também de descomplicar os testamentos. Eles se revestem de formalidades necessária, sem as quais ele não terá validade. Mas, diante de tanta tecnologia e mecanismos de expressão da vontade ao alcance de todos, será que não deveríamos dar mais importância ao conteúdo do que a forma?
O STJ já começou a flexibilizar tais formalidades em vários de seus julgados. A maioria dos testamentos é feita sob a forma de escritura pública. Em circunstâncias excepcionais, e estamos em tempos de exceção, o testamento particular pode prescindir de determinadas formalidades. É o caso do testamento hológrafo, que é uma espécie do gênero testamento particular (art. 1.879 do CCB), que tem sido adotado amplamente na Itália neste momento, um dos países mais atingidos pelo novo coronavírus.
Do grego holo (inteiro) e grafos (por escrito) expressa a ideia de escrito por inteiro do próprio punho. Sua característica, e requisito essencial, é ser escrito pela própria mão do testador, o que por si só não garante sua autenticidade e validade. É necessário que seja confirmado por três testemunhas, reconhecido e homologado em juízo após a morte do testador. O testamento hológrafo era a única modalidade de testamento particular. Mas o CCB/2002 introduziu o testamento particular feito por processo mecânico, ou redigido por terceiros (art. 1.876 do CCB), que pode ser, inclusive, por uma das testemunhas (Cf. meu Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. p. 748. Ed. Saraiva).
Na esteira da formalidade mínima para as disposições testamentárias, temos também o testamento nuncupativo, à semelhança do casamento nuncupativo. É aquele realizado inteiramente na forma verbal. É o testamento feito por militar de forma oral quando este se encontrar na iminência de morrer (art. 1.896, CCB). De origem romana, é utilizado pelos feridos em combate e o testador declara para duas testemunhas suas disposições de última vontade (Dicionário. p. 751).
Nestes tempos de pandemia deveríamos repensar e poder relativizar algumas formalidades, sem, entretanto, perder a segurança jurídica da verdadeira expressão da vontade do testador. Já perdemos boas oportunidades de simplificar a vida das pessoas, com o uso da tecnologia na prática jurídica, como por exemplo com citações por e-mail ou WhatsApp. Já passou da hora de podermos fazer videotestamentos.
Nada mais autêntico do que a voz e a imagem para alguém expressar sua real e verdadeira vontade. Em tempos de coronavírus, no mínimo, o videotestamento reforçaria a autenticidade do testamento hológrafo.
Quando passar esta pandemia e tivermos reaprendido outros valores, todos entenderemos que determinadas formalidades no Direito ficaram velhas e desnecessárias, e podem ser dispensadas sem comprometer a segurança das relações jurídicas.
Precisamos facilitar a vida das pessoas. Daremos mais valor à essência do que à formalidade que cerca um testamento, por exemplo. Entenderemos que não faz mais sentido, na vida atual de um mundo tecnológico, nos apegarmos tanto à forma em detrimento do conteúdo do Direito e da vontade da pessoa.
A quem servem todas essas formalidades? Se elas vêm em nome da segurança jurídica, e se há mecanismos modernos de assegurar até mais garantias de expressão da vontade, ficarmos apegados a elas, desnecessariamente, é fazer disto um fetiche, que só serve a quem goza com ele. Mas aí estaremos cada vez mais distantes da essência do Direito.
Rodrigo da Cunha Pereira é Advogado. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Doutor (UFPR) e mestre (UFMG), autor de vários livros e artigos em Direito de Família e Psicanálise.