Biodireito: (…) “Quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade – e não por terceiros ou por atuação judicial de ofício.”
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REGISTRO DE NASCIMENTO DEDUZIDO POR CASAL HOMOAFETIVO, QUE CONCEBEU O BEBÊ POR MÉTODO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. DECISÃO QUE ORDENOU A CITAÇÃO DO LABORATÓRIO RESPONSÁVEL PELA INSEMINAÇÃO E DO DOADOR ANÔNIMO, BEM COMO NOMEOU CURADOR ESPECIAL À INFANTE. DESNECESSÁRIO TUMULTO PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA DE LIDE OU PRETENSÃO RESISTIDA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA CONFERIR-LHE O STATUS QUE JÁ DESFRUTA DE FILHA DO CASAL AGRAVANTE, PODENDO OSTENTAR O NOME DA FAMÍLIA QUE LHE CONCEBEU. 1. Por tratar-se de um procedimento de jurisdição voluntária, onde sequer há lide, promover a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente desarrazoado. 2. Quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade – e não por terceiros ou por atuação judicial de ofício. 3. Sendo oportunizado à menor o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica responsável pela geração, por exigência de normas do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, não há motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade. 4. O elemento social e afetivo da parentalidade sobressai-se em casos como o dos autos, em que o nascimento da menor decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga. Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, do ECA, impõe-se o registro de nascimento para conferir-lhe o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (TJ-RS, AI 70052132370, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Oitava Câmara Cível, Data de Julgamento: 04/04/2013)
PODER JUDICIÁRIO
———- RS ———-
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LFBS
Nº 70052132370
2012/Cível
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REGISTRO DE NASCIMENTO DEDUZIDO POR CASAL HOMOAFETIVO, QUE CONCEBEU O BEBÊ POR MÉTODO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. DECISÃO QUE ORDENOU A CITAÇÃO DO LABORATÓRIO RESPONSÁVEL PELA INSEMINAÇÃO E DO DOADOR ANÔNIMO, BEM COMO NOMEOU CURADOR ESPECIAL À INFANTE. DESNECESSÁRIO TUMULTO PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA DE LIDE OU PRETENSÃO RESISTIDA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA conferiR-lhe o status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que lhe concebeu.
1. Por tratar-se de um procedimento de jurisdição voluntária, onde sequer há lide, promover a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente desarrazoado.
2. Quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade – e não por terceiros ou por atuação judicial de ofício.
3. Sendo oportunizado à menor o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica responsável pela geração, por exigência de normas do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, não há motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade.
4. O elemento social e afetivo da parentalidade sobressai-se em casos como o dos autos, em que o nascimento da menor decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga. Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, do ECA, impõe-se o registro de nascimento para conferir-lhe o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu.
DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
Agravo de Instrumento Oitava Câmara Cível
Nº 70052132370 Comarca de Porto Alegre
F.S.S.P.P.
..
AGRAVANTE
A.J.
..
AGRAVADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao agravo de instrumento.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Rui Portanova (Presidente) e Des. Alzir Felippe Schmitz.
Porto Alegre, 04 de abril de 2013.
DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)
FERNANDA S. S. e PATRICIA P. interpõem agravo de instrumento em face da decisão das fls. 100-103 (fls. 84-87) que, nos autos da ação de reconhecimento de filiação por elas ajuizada, determinou (a) a inclusão da menor ANTÔNIA S. P. no pólo passivo da ação, designando a Defensora Pública para exercer o encargo de curadora especial da menina; (b) a citação do Laboratório Gerar HMV e do doador anônimo que forneceu material para a concepção da menina Antônia, por meio de procuração outorgada ao Laboratório.
Sustentam: (1) que o Juízo ultrapassou os pedidos formulados pelas agravantes, violando o disposto nos arts. 128 e 460 do CPC ao determinar a inclusão do Laboratório, do doador anônimo e da menor no pólo passivo; (2) a pessoa concebida por intermédio de técnica de inseminação artificial heteróloga possui direito, caso desejar, de conhecer suas origens genéticas, podendo haver a quebra de sigilo referente ao doador; (3) mostra-se desnecessária a decisão, posto que o direito da menor de ter acesso às informações sobre sua ancestralidade é personalíssimo; (4) o direito de conhecimento do estado de filiação poderá ser exercido por Antônia por ocasião de sua maioridade civil, se ela assim quiser; (5) não é razoável que se chame o doador anônimo ao processo somente para que ele tenha conhecimento da existência da criança, sem que esta possa ao menos expressar sua vontade em conhecer a ascendência genética; (6) a resolução 1.957 do Conselho Federal de Medicina determina o sigilo sobre a identidade civil do doador em se tratamento de inseminação artificial heteróloga; (7) os dados do doador ficam registrados no Banco de Células e Tecidos Germinativos, mas mantidos sob sigilo; (8) não há razão para nomear curador especial à criança, pois seus interesses não colidem com os das agravantes; (9) não é admissível que o processo de jurisdição voluntária transmude-se em um litígio, onde, por presunção do Juízo, os interesses da criança colidam com o das recorrentes. Postulam a atribuição de efeito suspensivo ao recurso e requerem, ao final, o provimento do agravo para reformar a decisão atacada, a fim de excluir o comando de citação do Laboratório e do doador anônimo e da inclusão de Antônia no pólo passivo, revogando-se a nomeação de curador especial à menor.
Foi deferido o efeito suspensivo (fl. 128).
As agravantes juntaram a certidão de nascimento da menor (fl. 138), registrada em nome das recorrentes.
Não houve resposta (fl. 112).
O Ministério Público, nesta instância, opina pelo conhecimento e, no mérito, pelo provimento do recurso (fls. 113-114).
É o relatório.
VOTOS
Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)
As recorrentes, que mantém relacionamento afetivo desde o ano de 2008 (fls. 44-46) e recentemente casaram-se (fl. 139), conceberam a pequena ANTÔNIA, nascida em 26.11.2012 (fl. 138), por meio do método de reprodução assistida de fertilização in vitro cruzada e transferência embrionária (FIV-TE). O método consiste na utilização de óvulos de uma delas – no caso, PATRÍCIA – e de gameta masculino de doador anônimo, obtido em banco de sêmen, para realizar-se a fecundação in vitro, com a posterior implantação de embriões no útero da outra – FERNANDA –, tudo mediante livre consentimento das envolvidas (fls. 28-41).
Ainda durante a gestação, as agravantes ajuizaram a ação de reconhecimento de filiação, na qual postulavam, liminarmente, autorização para que a então nascitura ANTÔNIA fosse registrada com sobrenome das mães, e para que do registro constasse o nome das duas genitoras, ora agravantes, bem como dos avós da criança (fl. 26).
Sobreveio a decisão agravada (fls. 100v.-103), a qual, autorizando o registro da maternidade das requerentes em relação à menina ANTÔNIA, também determinou a inclusão da menor no pólo passivo, com a nomeação de curador especial, bem como ordenou a citação do Laboratório GERAR HMV e do doador que forneceu o gameta para a concepção da criança, a fim de preservar o direito da menina em reconhecer sua ancestralidade paterna.
Faço esse relato pormenorizado para bem elucidar o caso dos autos e adianto que estou em dar provimento ao recurso.
Estamos aqui tratando de um procedimento de jurisdição voluntária, onde nem sequer há lide. Nessa perspectiva é que deferi o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, porquanto promover a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente desarrazoado.
As questões de ordem parental que envolvem as técnicas de reprodução assistida foram por mim tratadas em artigo que escrevi em novembro de 20041, onde deixei consignado:
A utilização das técnicas de reprodução assistida, especialmente quando empregado material fecundante de terceiro (reprodução heteróloga), que não o marido ou companheiro da mãe, agudiza uma tradicional problemática do Direito de Família, representada pela indagação QUEM É O PAI ?
A definição da paternidade sempre foi para o Direito uma questão tormentosa. É que, enquanto a maternidade resulta das evidências da gravidez e do parto – eventos públicos – sobre a paternidade recaía até há pouco o manto da incerteza, pois a concepção, de regra, sempre foi um ato praticado privadamente. Os romanos resumiam isso na conhecida máxima mater semper certa est, pater incertus.
(…) com a introdução das técnicas de reprodução assistida, deu-se mais um passo, desligando-se, por sua vez, a reprodução de seu pressuposto, o ato sexual. Além disso, ficou profundamente alterada a noção de ato procriador, antes situado na mais estrita intimidade do casal, agora podendo resultar de um ato público, com intervenção de terceiros, cientificamente comprovável.
Essa evolução tem levado muitos juristas a tratar da filiação fora de um suporte meramente biológico, em favor de uma paternidade de intenção, constituída a partir da vontade. Como assinala Guilherme Calmon NOGUEIRA DA GAMA:
É fundamental considerar, no âmbito da parentalidade-filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, a vontade como elemento essencial para o fim de se admitir o estabelecimento do vínculo de paternidade-filiação e de maternidade-filiação.
Nessa linha, nosso atual Código Civil, na disposição pioneira do art. 1.593, de conteúdo extremamente aberto, define como parentesco civil a relação que decorre de “outra origem” que não a consangüinidade (geradora esta do parentesco natural).
Sinale-se que na redação original do Projeto do Código constava como parentesco civil apenas aquele resultante da adoção, ignorando por completo a situação daqueles filhos havidos por inseminação artificial heteróloga (art. 1.597, V), que, a permanecer aquele texto, não teriam relação de parentesco possivelmente nem sequer com o marido da mãe (e com os parentes deste), o que configuraria evidente absurdo. Na etapa final de tramitação do Projeto, já na Comissão de Redação é que, resultante de proposta encaminhada pelo IBDFAM, foi modificada a parte final do dispositivo, sendo trocada a palavra “adoção” pela expressão “outra origem”. Na justificativa então apresentada consignou-se que
a proposta de retificação do texto do dispositivo substituindo “adoção” por “outra origem” leva em conta a necessidade de não se excluírem outras fontes das relações de parentesco como, por exemplo, aquelas relativas à utilização de técnicas de reprodução assistida com a utilização de material genético de terceiro. Por força do disposto no art. 227, § 6º, da Constituição Federal, bem como do reconhecimento da presunção de paternidade relativamente ao marido que consente que sua esposa seja inseminada artificialmente com sêmen de terceiro (o doador), logicamente que a criança que venha a nascer, fruto de uma das técnicas de reprodução assistida, terá vínculos de parentesco não apenas com os pais, mas também com os parentes em linha reta e em linha colateral deles.
Ademais, a expressão proposta enseja o reconhecimento jurídico da paternidade socioafetiva, fonte das mais saudáveis relações familiares.
Portanto, a referência apenas à adoção é restritiva e exclui outras fontes do parentesco civil, motivo pelo qual deve ser retificada a redação do dispositivo.
A expressão “outra origem” engloba, portanto, a filiação não-decorrente da consangüinidade, que se pode classificar em: a) filiação adotiva; b) filiação havida por reprodução artificial heteróloga; c) filiação socioafetiva (resultante da posse de estado de filho).
(…)
Enquanto a filiação consangüínea (onde estão incluídos os filhos havidos por reprodução artificial homóloga) tem como origem e fundamento a concepção (intencional ou fortuita), a filiação civil (onde se inclui a resultante de reprodução artificial heteróloga) resulta, como antes assinalado, da vontade, inspirada pelo afeto.
(…)
Assim, tendo em mira que na reprodução artificial homóloga há perfeita coincidência entre a verdade juridicamente estabelecida e a verdade biológica, é no âmbito da reprodução artificial heteróloga – geradora, como se viu, de uma das formas de parentesco civil – que se põem as maiores indagações.
(…)
A terceira versa a possibilidade ou não de ser buscado o reconhecimento de paternidade por parte do filho junto ao dador do sêmen, ou, ao contrário, se este pode procurar a declaração de paternidade. Aqui, em geral, tem sido destacada a relevância em manter incógnito o dador do material fecundante, sob pena de inviabilizar a própria utilização da técnica, por absoluta ausência de interessados na doação. Entretanto, a isso se contrapõe, em geral, o direito de personalidade do ser gerado ao conhecimento de sua ancestralidade. Da ponderação desses critérios, diversas respostas têm sido encontradas na doutrina, predominando aquela que recomenda a manutenção do anonimato do dador, com preservação, no entanto, nos bancos de sêmen, dos seus dados genéticos.
(…)
Em suma – e diante da imensidão do tema, apenas esboçado aqui a vôo de pássaro, dada a exigüidade do tempo – a ERA DOS PRINCÍPIOS, inaugurada em finais do século XX, caracteriza-se, no campo do Direito de Família, pelo tríptico constituído (1) pelo princípio da dignidade da pessoa humana, (2) pelo princípio da proteção integral à criança e ao adolescente e (3) pelo princípio da proteção especial à família, os quais conduzem ao reconhecimento do AFETO como valor juridicamente relevante na família eudemonista, vista agora como instrumento de realização de seus componentes, e não mais como unidade de produção, reprodução e transmissão de patrimônio. Na filiação isso se reflete na preponderância da vontade (inspirada pela relação afetiva), e não mais da biologia, como a mais autêntica fonte do vínculo paterno-filial. (grifei)
É evidente que o indivíduo que opta por doar anonimamente seus óvulos ou espermatozóides assim o faz porque não tem a mínima intenção pessoal de conceber a criança que eventualmente se gerará com seus gametas, tampouco lhe interessa saber quem é ou onde está esta criança, ou mesmo se ela existe. A doação anônima de gametas e embriões é um ato altruísta, de quem deseja ajudar pessoas inférteis, ou com impossibilidade de conceber naturalmente uma criança, a realizar o sonho de gerar um filho.
Desse modo, quebrar o anonimato sobre a pessoa do doador, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação. Sabendo que não seria anônima a doação, simplesmente passaria a não haver interessados em doar seus gametas, pois é corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada.
Certo é que este desejo do doador de não ser identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua ancestralidade – e não por terceiros, tampouco por atuação judicial de ofício.
Sabe-se que as informações dos doadores anônimos são guardadas pela clínica responsável pela geração, sob absoluto sigilo, em banco de dados permanente, até mesmo por exigência da resolução nº 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina e da resolução-RDC n.º 23/2011 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para viabilizar o acesso a tais informações para fins médicos.
Assim, sendo oportunizado à menor ANTÔNIA o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica – no caso, o Laboratório Gerar HMV –, não há motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade e, no mais, não se verifica conflito de interesses entre as autoras e a menina. Bem pelo contrário, há nítida convergência de interesses.
Há muito está superada a noção de que o reconhecimento da maternidade/paternidade decorre exclusivamente da existência de vínculo biológico ou gestacional, sobrelevando, em muitos casos, a parentalidade socioafetiva, fruto exclusivo da vontade, e não da genética, como destaquei no texto acima transcrito. Esse elemento social e afetivo sobressai-se em casos como o dos autos, em que o nascimento da menor Antônia decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga.
Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, da Lei n.º 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, o registro de nascimento de Antônia constando o nome das recorrentes é medida que se impõe, como forma de regularizar a situação fática da parentalidade, conferindo à criança o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu.
Por tais fundamentos, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento.
Des. Alzir Felippe Schmitz – De acordo com o (a) Relator (a).
Des. Rui Portanova (PRESIDENTE) – De acordo com o (a) Relator (a).
DES. RUI PORTANOVA – Presidente – Agravo de Instrumento nº 70052132370, Comarca de Porto Alegre:”DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.”
Julgador (a) de 1º Grau:
1 SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Reprodução Assistida e Paternidade Socioafetiva.. Publicado em novembro/2004. Disponível em: <http://direitodefamiliars.blogspot.com.br/2011/06/doutrina-reproducao-assistida-e.html>.