Publicado em 25 de junho de 2017 por Conjur
Por Rodrigo da Cunha Pereira
Os pais não têm noção do mal que fazem aos próprios filhos quando falam mal um do outro. Às vezes mais sútil, às vezes mais explícito, aos poucos vão, mesmo sem ver, implantando nos filhos uma imagem negativa daquele que é um dos responsáveis pela formação e estruturação psíquica do filho. Os malefícios causados aos próprios filhos, nesses casos, são tantos e tão violentos que dificilmente são reversíveis. Mas isso não acontece do dia para a noite. É aos poucos. Quase imperceptível, às vezes só verão esse estrago na psique do filho muito mais tarde. E aí, quando vir à consciência do mal feito a eles, já será tarde demais, e o arrependimento de nada adiantará. As marcas são indeléveis.
A essa maldade humana damos o nome de alienação parental. Um dos pais, consciente ou inconscientemente, aliena, isto é, retira da vida do filho o outro pai/mãe, em um plano “diabólico”, na maioria das vezes sutil. Lentamente vai desconstruindo a imago paterna ou materna, até que o filho não quer mais conviver com o pai/mãe alienado. Segundo o psiquiatra americano, Richard Gardner, o primeiro a usar essa expressão, em meados da década de 1980, essa desconstrução da imago paterna/materna pode acontecer em várias etapas. No estágio leve, as campanhas de desmoralização são discretas e raras; no médio, os filhos sabem o que o alienador quer escutar e começam a colaborar com a campanha de denegrir a imagem do pai/mãe alienado; no grave, os filhos já entram em pânico por terem de conviver com o outro pai/mãe e evitam qualquer contato (Cf. meu Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado. Ed. Saraiva. Pág. 74).
O Brasil é um dos raros países do mundo que tem uma legislação específica sobre o assunto. Em 27/8/2017, comemoramos os sete anos da Lei 12.318, que veio definitivamente solidificar esse importante conceito, como se vê em seu artigo 2º: “Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente, que promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para que repudie o genitor ou que cause prejuízos ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. E o parágrafo único deste mesmo artigo exemplifica atos de alienação parental, além de outros que podem ser declarados pelo juiz, se constatados por perícia ou por outros meios de prova: I – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II – dificultar o exercício da autoridade parental; III – dificultar contato da criança ou adolescente com genitor; IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V – omitir deliberadamente ao genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar sua convivência com a criança ou adolescente; VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós”. A expressão genitor não é adequada, pois ela exclui outras categorias de pais, como os adotivos e outras parentalidades socioafetiva.
Alienação parental sempre existiu, desde que o mundo é mundo. Apenas não sabíamos nomeá-la. A partir do momento em que conseguimos dar nome a essa maldade humana, ficou mais fácil proteger as crianças e adolescentes vítimas dessa violência praticada pelos próprios pais. Em alguns casos, a alienação é tão grave que pode até transformar-se em uma síndrome, como inicialmente foi denominada: SAP (Síndrome da Alienação Parental). Mas na evolução do pensamento jurídico, não mais denominamos assim, pois nem sempre há uma síndrome, essa categoria médica de difícil aferição. Por isso, o texto da lei brasileira, com razão, não se refere à síndrome, embora algumas pessoas ainda resistam em assim denominá-la.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) expediu, em 25/4/2016, a Recomendação 32/2016, estabelecendo uma importante política de combate à alienação parental e atuação do Ministério Público brasileiro, de políticas e diretrizes administrativas que fomentem o combate à alienação parental, que compromete o direito à convivência familiar da criança, adolescente, pessoas com deficiência e incapazes de exprimir a sua vontade. Mas essa bem intencionada medida parece ter ficado só no papel. Não se tem notícia de comprometimento e efetivação de programas de combate a essa prática tão danosa às crianças e aos adolescentes. Precisamos saber o porquê dessas boas intenções ficarem só no papel. Os pais que são vítimas de alienação parental devem cobrar do Ministério Público uma ação mais efetiva de combate a essa violência.
As consequências psíquicas da alienação parental nos filhos são quase imensuráveis. Vão desde sintomas mais evidentes, como desestruturação psíquica, psicossomatizações, dificuldades de estabelecer vínculos afetivos, depressão, transtornos de identidade, comportamento hostil, consumo de álcool e drogas e até mesmo suicídio.
As consequências jurídicas, uma vez declarada pelo juiz a alienação parental, em ação autônoma ou incidental, são advertência, inversão de guarda, restrições de convivência ou convívio monitorado e até mesmo a suspensão do poder familiar (artigo 6º). As provas da alienação parental, em geral, são feitas por perícia, mas também por documentos e testemunhas.
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.488/2016, em análise na Câmara dos Deputados, que volta a inserir à Lei 12.318/2010 a tipificação e a criminalização da alienação parental, que havia sido vetada pela Presidência da República.
Um dos antídotos para a alienação parental é a prática da guarda compartilhada. Se os pais compartilham o cotidiano dos filhos, os efeitos da alienação parental podem ser diminuídos ou evitados, especialmente quando os filhos conseguem introjetar que eles têm duas casas, o que é uma prática saudável para um compartilhamento do exercício da autoridade parental.
A raiz dessa inacreditável violência contra as crianças e adolescentes, em sua quase totalidade, está associada a uma relação de amor e ódio mal resolvida entre os pais. Esse ressentimento entre os ex-casais vem, inclusive, da idealização do amor romântico, que cria no imaginário das pessoas uma idealização do par perfeito, que sabemos, é perfeitamente impossível. E, quanto maior é a idealização e expectativa na conjugalidade, maior é a decepção. Mesmo nos casais que se separaram consensualmente, mas não elaboraram bem o fim da conjugalidade, há um discurso do não dito que conduz à alienação parental, que em síntese é: “Se você não quer viver comigo e continuar nosso amor, vai comer o pão que o diabo amassou. Nem seu filho vai querer conviver com você”.
A alienação parental vincula-se a um dos mais terríveis sentimentos humanos, que é a rejeição. Alguém que não elabora psiquicamente o fato de o outro não mais amá-lo, ou não querer mais viver uma relação amorosa, é capaz de tirar de suas entranhas um sentimento de vingança, que não poupa nem o próprio filho. Tudo isso para não se deparar com o seu desamparo estrutural, e desencadeia um processo de desmoralização do(a) “ex” a ponto de aliená-lo da vida do filho. E é aí que o filho é deslocado do lugar de sujeito de direitos e desejos e passa a ser objeto de desejo e satisfação do desejo do “alienador”. É a objetificação do sujeito, para transformá-lo em veículo de ódio. Ainda bem que temos a Lei 12.318/10 para tentar barrar esses excessos gozosos e colocar limites em quem não o tem internamente. Eis aí a função mais importante da lei jurídica.