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STJ: Princípio do melhor interesse da criança

Ronner Botelho

(…) O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 588⁄589).

RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MENOR PLEITEADA PELA AVÓ PATERNA E SEU COMPANHEIRO (AVÔ POR AFINIDADE). MITIGAÇÃO DA VEDAÇÃO PREVISTA NO § 1º DO ARTIGO 42 DO ECA. POSSIBILIDADE. 1. A Constituição da República de 1988 consagrou a doutrina da proteção integral e prioritária das crianças e dos adolescentes, segundo a qual tais “pessoas em desenvolvimento” devem receber total amparo e proteção das normas jurídicas, da doutrina, jurisprudência, enfim de todo o sistema jurídico. 2. Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069/90 – reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo -, que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social. 3. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 588/589). 4. É certo que o § 1º do artigo 42 do ECA estabeleceu, como regra, a impossibilidade da adoção dos netos pelos avós, a fim de evitar inversões e confusões (tumulto) nas relações familiares – em decorrência da alteração dos graus de parentesco -, bem como a utilização do instituto com finalidade meramente patrimonial. 5. Nada obstante, sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da chamada adoção avoenga, revela-se cabida sua mitigação excepcional quando: (i) o pretenso adotando seja menor de idade; (ii) os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento; (iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por estudo psicossocial; (iv) o adotando reconheça os – adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão; (v) inexista conflito familiar a respeito da adoção; (vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; (vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da predominância de interesses econômicos; e (viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando. Precedentes da Terceira Turma. 6. Na hipótese dos autos, consoante devidamente delineado pelo Tribunal de origem: (i) cuida-se de pedido de adoção de criança nascida em 17.3.2012, contando, atualmente, com sete anos de idade; (ii) a pretensão é deduzida por sua avó paterna e seu avô por afinidade (companheiro da avó há mais de trinta anos); (iii) os adotantes detém a guarda do adotando desde o seu décimo dia de vida, exercendo, com exclusividade, as funções de mãe e pai da criança; (iv) a mãe biológica padece com o vício de drogas, encontrando-se presa em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes, não tendo contato com o filho desde sua tenra idade; (v) há estudo psicossocial nos autos, atestando a parentalidade socioafetiva entre os adotantes e o adotando; (vi) o lar construído pelos adotantes reúne as condições necessárias ao pleno desenvolvimento do menor; (vii) o adotando reconhece os autores como seus genitores e seu pai (filho da avó/adotante) como irmão; (viii) inexiste conflito familiar a respeito da adoção, contra qual se insurge apenas o Ministério Público estadual (ora recorrente); (ix) o menor encontra-se perfeitamente adaptado à relação de filiação de fato com seus avós; (x) a pretensão de adoção funda-se em motivo mais que legítimo, qual seja, desvincular a criança da família materna, notoriamente envolvida em criminalidade na comarca apontada, o que já resultou nos homicídios de seu irmão biológico de apenas nove anos de idade e de primos adolescentes na guerra do tráfico de entorpecentes; e (xi) a adoção apresenta reais vantagens para o adotando, que poderá se ver livre de crimes de delinquentes rivais de seus parentes maternos. 7. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ – REsp: 1587477 SC 2016/0051218-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 10/03/2020, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/08/2020)

Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça
Revista Eletrônica de Jurisprudência

RECURSO ESPECIAL Nº 1.587.477 – SC (2016⁄0051218-8)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MENOR PLEITEADA PELA AVÓ PATERNA E SEU COMPANHEIRO (AVÔ POR AFINIDADE). MITIGAÇÃO DA VEDAÇÃO PREVISTA NO § 1º DO ARTIGO 42 DO ECA. POSSIBILIDADE.
1. A Constituição da República de 1988 consagrou a doutrina da proteção integral e prioritária das crianças e dos adolescentes, segundo a qual tais “pessoas em desenvolvimento” devem receber total amparo e proteção das normas jurídicas, da doutrina, jurisprudência, enfim de todo o sistema jurídico.
2. Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069⁄90 – reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo –, que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social.
3. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 588⁄589).
4. É certo que o § 1º do artigo 42 do ECA estabeleceu, como regra, a impossibilidade da adoção dos netos pelos avós, a fim de evitar inversões e confusões (tumulto) nas relações familiares – em decorrência da alteração dos graus de parentesco –, bem como a utilização do instituto com finalidade meramente patrimonial.
5. Nada obstante, sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da chamada adoção avoenga, revela-se cabida sua mitigação excepcional quando: (i) o pretenso adotando seja menor de idade; (ii) os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento; (iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por estudo psicossocial; (iv) o adotando reconheça os – adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão; (v) inexista conflito familiar a respeito da adoção; (vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; (vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da predominância de interesses econômicos; e (viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando. Precedentes da Terceira Turma.
6. Na hipótese dos autos, consoante devidamente delineado pelo Tribunal de origem: (i) cuida-se de pedido de adoção de criança nascida em 17.3.2012, contando, atualmente, com sete anos de idade; (ii) a pretensão é deduzida por sua avó paterna e seu avô por afinidade (companheiro da avó há mais de trinta anos); (iii) os adotantes detém a guarda do adotando desde o seu décimo dia de vida, exercendo, com exclusividade, as funções de mãe e pai da criança; (iv) a mãe biológica padece com o vício de drogas, encontrando-se presa em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes, não tendo contato com o filho desde sua tenra idade; (v) há estudo psicossocial nos autos, atestando a parentalidade socioafetiva entre os adotantes e o adotando; (vi) o lar construído pelos adotantes reúne as condições necessárias ao pleno desenvolvimento do menor; (vii) o adotando reconhece os autores como seus genitores e seu pai (filho da avó⁄adotante) como irmão; (viii) inexiste conflito familiar a respeito da adoção, contra qual se insurge apenas o Ministério Público estadual (ora recorrente); (ix) o menor encontra-se perfeitamente adaptado à relação de filiação de fato com seus avós; (x) a pretensão de adoção funda-se em motivo mais que legítimo, qual seja, desvincular a criança da família materna, notoriamente envolvida em criminalidade na comarca apontada, o que já resultou nos homicídios de seu irmão biológico de apenas nove anos de idade e de primos adolescentes na guerra do tráfico de entorpecentes; e (xi) a adoção apresenta reais vantagens para o adotando, que poderá se ver livre de crimes de delinquentes rivais de seus parentes maternos.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, após o voto-vista do Ministro Marco Buzzi acompanhando o relator, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do relator e com acréscimo de fundamentação do Ministro Marco Buzzi (Presidente).
Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi (Presidente) (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 10 de março de 2020 (Data do Julgamento)
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.587.477 – SC (2016⁄0051218-8)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Em 26.11.2012, os conviventes N. A. de S. e C. N. da S. ajuizaram ação em face de A. J. e A. de S., postulando a concessão da guarda definitiva do menor S. J. de S., a regulamentação das visitas da genitora ao filho e a fixação de alimentos em 10% (dez por cento) do salário mínimo, a serem pagos pela ré diretamente aos guardiões, mediante recibo.
Na inicial, os autores narraram que o infante nasceu em 17.3.2012 e que, alguns dias após o parto, a genitora entregou-o aos cuidados de N. A. de S. (avó paterna) e de seu companheiro (C. N. da S. – avô por afinidade). Informaram que os pais da criança eram dependentes químicos, tendo concordado com a permanência do filho sob a guarda dos autores. Alegaram que temem pela integridade física e psíquica do menor, pois a genitora (que, à época, se prostituía em rodovias) costumava aparecer visivelmente “drogada” na casa dos autores, ameaçando retomar a guarda, o que motivou o ajuizamento da ação.
Em 11.12.2012, foi deferida a liminar mantendo os demandantes com a guarda da criança, tendo sido regulamentada a visita da mãe e arbitrados alimentos (fls. 36⁄37).
Em 14.1.2014, os autores apresentaram emenda à inicial, requerendo a adoção do infante, apontando, como justificativa, a necessidade de preservação de sua integridade física, ante o assassinato, em 2013, de seu irmão por parte de mãe – que contava com apenas nove anos de idade – por grupos de traficantes. De acordo com os demandantes, a morte do irmão unilateral de S. foi motivada por vingança contra os tios maternos, envolvidos em tráfico de drogas e outros crimes há bastante tempo. Ressaltaram ainda, no pedido de adoção, que a própria genitora manifestara o desejo de retirar o sobrenome “J.” do filho, acreditando que o sobrenome da família poderia condenar o futuro do infante à marginalidade e marcaria de forma negativa a sua vida. Informaram que o genitor (filho da autora) também concordava com o que fora proposto.
Os pais da criança foram devidamente citados e ouvidos em audiência, oportunidade em que declararam concordar com a adoção.
O magistrado de piso julgou procedente a pretensão deduzida na inicial, concedendo a adoção do menor S. J. de S. e determinando o fornecimento de certidão para inscrição no registro civil, consignando o nome dos adotantes e seus ascendentes, alterando-se o nome do infante para S. de S. da S., cancelando-se os registros anteriores.
Interposta apelação pelo Ministério Público de Santa Catarina, o Tribunal de Justiça estadual negou provimento ao reclamo, cujo acórdão encontra-se assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. PRELIMINAR ARGUIDA NO PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. NULIDADE. CURADOR ESPECIAL NÃO NOMEADO À RÉ PRESA. MÁCULA AFASTADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. CPC, ART. 249, § 1º. MÉRITO. DISCUSSÃO NO TOCANTE À POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE DESCENDENTE POR ASCENDENTE. VEDAÇÃO DO ART. 42, § 1º, DO ECA. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO CONJUNTA COM O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ECA, ART. 6º. PRECEDENTE DO STJ. POSSIBILIDADE, NO CASO, DE ADOÇÃO PELOS AVÓS PATERNOS DO INFANTE. ADOÇÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Opostos embargos de declaração pelo parquet estadual, os quais foram rejeitados na origem.
Nas razões do especial, fundado na alínea a do permissivo constitucional, o recorrente aponta violação dos artigos 267, inciso VI, e 535, inciso II, do CPC de 1973; 6º, 39, § 1º, 42, § 1º, e 43 da Lei 8.069⁄90.
Sustenta, em síntese: (i) negativa de prestação jurisdicional, por não terem sido supridas as omissões suscitadas nos aclaratórios; (ii) impossibilidade jurídica da adoção avoenga, pois vedada expressamente pela lei; (iii) “em havendo a possibilidade de se manter o poder familiar dos pais para com o filho, não há que falar em destituição familiar e adoção por parte de outrem, mesmo que os interessados sejam os avós e ainda que sob a justificativa de que, por conta do reiterado envolvimento dos genitores com o uso e com o tráfico de entorpecentes, a responsabilidade pela sua criação sempre pertenceu de modo exclusivo aos requerentes” (fl. 204); (iv) “permitir a adoção de pessoas com vínculo de ascendência e descendência geraria, para além de certa confusão patrimonial, abalo emocional, na medida em que o neto, uma vez adotado, passaria a ser irmão de seu pai biológico, porque filho de seus avós”, o que não traduz o melhor interesse da criança (fl. 205); e (v) “se o propósito é atender às necessidades da criança nada impede que ela seja protegida pelos avós por meio do instituto da guarda ou da tutela – objeto inicial da presente demanda -, sem que essa providência importe em romper, em caso tal, o tão importante vinculo da filiação” (fl. 207).
Apresentadas contrarrazões ao apelo extremo, recebeu crivo positivo de admissibilidade na origem.
O parecer do Ministério Público Federal é pelo conhecimento parcial do recurso especial e, nessa extensão, pelo seu provimento, nos termos da seguinte ementa (fls. 261⁄264):
RECURSO ESPECIAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO 535, II, DO CPC⁄1973. INEXISTÊNCIA. MÉRITO. ADOÇÃO DE NETO PELOS AVÓS PATERNOS. VEDAÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 42, § 1º, DO ECA. CONHECIMENTO PARCIAL DO RECURSO ESPECIAL. NO PONTO EM QUE CONHECIDO, SUGERE-SE O PROVIMENTO.1. O acórdão recorrido não apresentou omissão, obscuridade ou contrariedade que justificasse a oposição de embargos declaratórios.
2. A circunstância posta nos autos atrai a incidência do artigo 42, § 1º, do ECA, que disciplina que é vedada a adoção de descendente (neto) por seus ascendentes (avós).
3. Acórdão recorrido que merece reparo.
4. Conhecimento parcial do recurso especial e, no ponto em que conhecido, manifesta-se pelo provimento.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.587.477 – SC (2016⁄0051218-8)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO DE MENOR PLEITEADA PELA AVÓ PATERNA E SEU COMPANHEIRO (AVÔ POR AFINIDADE). MITIGAÇÃO DA VEDAÇÃO PREVISTA NO § 1º DO ARTIGO 42 DO ECA. POSSIBILIDADE.
1. A Constituição da República de 1988 consagrou a doutrina da proteção integral e prioritária das crianças e dos adolescentes, segundo a qual tais “pessoas em desenvolvimento” devem receber total amparo e proteção das normas jurídicas, da doutrina, jurisprudência, enfim de todo o sistema jurídico.
2. Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069⁄90 – reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo –, que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social.
3. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 588⁄589).
4. É certo que o § 1º do artigo 42 do ECA estabeleceu, como regra, a impossibilidade da adoção dos netos pelos avós, a fim de evitar inversões e confusões (tumulto) nas relações familiares – em decorrência da alteração dos graus de parentesco –, bem como a utilização do instituto com finalidade meramente patrimonial.
5. Nada obstante, sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da chamada adoção avoenga, revela-se cabida sua mitigação excepcional quando: (i) o pretenso adotando seja menor de idade; (ii) os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento; (iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por estudo psicossocial; (iv) o adotando reconheça os – adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão; (v) inexista conflito familiar a respeito da adoção; (vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; (vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da predominância de interesses econômicos; e (viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando. Precedentes da Terceira Turma.
6. Na hipótese dos autos, consoante devidamente delineado pelo Tribunal de origem: (i) cuida-se de pedido de adoção de criança nascida em 17.3.2012, contando, atualmente, com sete anos de idade; (ii) a pretensão é deduzida por sua avó paterna e seu avô por afinidade (companheiro da avó há mais de trinta anos); (iii) os adotantes detém a guarda do adotando desde o seu décimo dia de vida, exercendo, com exclusividade, as funções de mãe e pai da criança; (iv) a mãe biológica padece com o vício de drogas, encontrando-se presa em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes, não tendo contato com o filho desde sua tenra idade; (v) há estudo psicossocial nos autos, atestando a parentalidade socioafetiva entre os adotantes e o adotando; (vi) o lar construído pelos adotantes reúne as condições necessárias ao pleno desenvolvimento do menor; (vii) o adotando reconhece os autores como seus genitores e seu pai (filho da avó⁄adotante) como irmão; (viii) inexiste conflito familiar a respeito da adoção, contra qual se insurge apenas o Ministério Público estadual (ora recorrente); (ix) o menor encontra-se perfeitamente adaptado à relação de filiação de fato com seus avós; (x) a pretensão de adoção funda-se em motivo mais que legítimo, qual seja, desvincular a criança da família materna, notoriamente envolvida em criminalidade na comarca apontada, o que já resultou nos homicídios de seu irmão biológico de apenas nove anos de idade e de primos adolescentes na guerra do tráfico de entorpecentes; e (xi) a adoção apresenta reais vantagens para o adotando, que poderá se ver livre de crimes de delinquentes rivais de seus parentes maternos.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Não merece acolhida a preliminar de negativa de prestação jurisdicional.
Isso porque, embora rejeitados os embargos de declaração, verifica-se que a controvérsia sobre a possibilidade jurídica da adoção avoenga foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário ao defendido pelo recorrente.
Desse modo, não há falar em ofensa ao artigo 535 do CPC de 1973.
3. A controvérsia principal dos autos reside em definir se é possível a adoção avoenga à luz do quadro fático delineado pelas instâncias ordinárias, malgrado o disposto no § 1º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
No caso concreto, o magistrado de piso julgou procedente a pretensão de adoção deduzida pela avó paterna e seu companheiro (“avô por afinidade”), decisão que foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, pelos seguintes fundamentos:
(…) a matéria de fato apurada nos autos é absolutamente incontroversa, situação expressamente assinalada pelo próprio representante ministerial. A insurgência, então, dirige-se apenas à existência de vedação legal ao pleito em questão – adoção da criança por sua avó paterna e pelo companheiro desta -, prevista no § 1º do artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
(…)
Não se pode negar que o dispositivo tem suas razões de ser. A depender da situação, tal forma de adoção pode gerar embaraços familiares, problemas no tocante à sucessão dos postulantes à adoção e até mesmo fraudes em relação a direitos previdenciários e assistenciais.
Não obstante, a leitura do dispositivo deve ser iluminada pelo fim maior a que se propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente, qual seja, a tutela integral dos direitos dos menores. É, neste sentido, a determinação do artigo 6º da referida lei, já mencionado acima, ao afirmar que “na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” . Logo, muito embora haja proibição expressa na lei quanto à adoção de descendentes por seus ascendentes, caso tal situação revele o atendimento ao melhor interesse do adotando, inexiste razão para deixar de acolher o pedido de adoção. Trata-se, é verdade, de hipótese excepcional, mas que não pode ser ignorada.
(…)
Penso, na esteira de tais argumentos, enquadrar-se a situação dos autos justamente na exceção à regra da proibição de adoção dos descendentes pelos ascendentes.
O estudo social realizado nos autos deixa claro, conforme já assinalado alhures, estar S., adotando, sob os cuidados dos adotantes, C. e N., desde a mais tenra idade – dez dias de vida, ocasião em que foi ali deixado por sua mãe biológica, A. J. Esta, a seu turno, padece com o vício de drogas e se encontra segregada em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes, conforme registra o documento de fl. 71, há muito não tendo contato com S.
Por força desta relação desde o berço, a criança reconhece os autores, detentores da guarda provisória desde os quatro meses de idade do infante (fl. 21), como seus verdadeiros pais, chamando-os, inclusive, por “pai” e “mãe”. Há bastante afeto entre o casal e S., consoante ressaltado pelo trabalho da auxiliar do juízo, além de o lar construído pelos adotantes reunir as condições necessárias ao pleno desenvolvimento do menor:
Foi possível observar durante as intervenções uma relação muito afetuosa entre o infante em tela e seus guardiões. O espaço doméstico, além de organizado e devidamente higienizado, pareceu-nos adequado e favorável ao desenvolvimento saudável de S., que tem suas necessidade afetivas, materiais e educacionais atendidas pelos guardiões, que demonstram estar zelando pelo menino de acordo com os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (fis. 83⁄84).
O trabalho ainda registra um pouco da história de vida dos apelados, referindo o quanto já se doaram para a criação de outras pessoas:
Sr. C. ainda relatou um pouco da sua história de vida, afirmou também ser pai de um filho antes de ter se unido a Sra. N., com o qual mantém pouco contato, pois o mesmo cresceu em sua cidade natal [Fortaleza⁄CE). Além dos filhos que tem em comum e do filho da Sra. N., criado por Sr. C. como filho também, o casal afirma ter auxiliado ainda na criação de dois sobrinhos que ficaram órfãos de pai e mãe, um deles faleceu há cerca de oito anos de acidente de moto, e o outro, já casado, ainda os tem como referência de família, freqüentando regularmente a casa do casal (fl. 83).
De outro vértice, o pai biológico do menino, A., filho da adotante N., reside em outro município e não mantém contato com o infante. É chamado por este de “mano”, a demonstrar que S. reconhece-o não como seu pai, mas como seu irmão (fl. 82). Ademais, disse em audiência concordar com o pedido de adoção.
Assim, a condição retratada nos autos deixa transparecer a perfeita adaptação do menor à relação de filiação de fato com seus avós. Inserido em família que lhe proporciona condições afetivas, morais e materiais para pleno desenvolvimento e não contando com qualquer amparo de seus pais biológicos, tudo recomenda a legalização, por meio da adoção, da situação de fato já estabelecida.
Há, ainda, mais uma importante questão a ser levada em consideração para acolher o pedido em tela, que não pode ser negligenciada.
Conforme visto, a genitora de S., A. J., está ligada à prática de ilícitos criminais. Não se trata, contudo, de caso isolado na família J. Segundo revelam os autos, grande parte dos parentes maternos da criança – ramo ao qual não pertencem os adotantes, ascendentes paternos de S. – está envolvida com a realização de crimes, sendo bastante conhecidos na comarca de origem, conforme matérias dos periódicos anexados às fls. 56⁄57 dos autos.
Tão profundo o envolvimento dos J. no tráfico de drogas da cidade que um menor de apenas 9 (nove) anos, irmão de S. por parte de mãe, foi vítima de homicídio quando dormia, durante a madrugada, em um casebre onde residia com sua avó materna. Tudo isto, segundo revelam matérias jornalísticas, apenas em razão de pertencer àquela família.
Além disso, registra a sentença que “recentemente, dois de seus primos adolescentes foram mortos em uma troca de tiros com a polícia. Esses são apenas os casos mais novos, pois muitos membros desta família já foram assassinados na guerra do tráfico ou encontram-se presos cumprindo pena por tráfico e homicídio” (fl. 93).
Este, talvez, seja o maior benefício que a adoção possa trazer à criança. Retirá-la do convívio de seus familiares maternos e suprimir a menção ao sobrenome de tamanho envolvimento na criminalidade da comarca de origem pode poupar-lhe a vida, mais precioso bem de qualquer pessoa, e a liberdade.
Por todas estas razões, considerando que a medida em tela é aquela que melhor se amolda aos princípios que norteiam o Estatuto da Criança e do Adolescente, deve ser mantida a sentença ora recorrida. (fls. 171⁄175)
4. Como é de sabença, o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657⁄42) preceitua que, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” .
Tal comando foi parcialmente reproduzido no artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069⁄90), que assim dispõe:
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
A civilista Maria Helena Diniz, ao discorrer sobre a finalidade social norteadora do exercício do mister hermenêutico próprio da atividade jurisdicional (nos termos dos artigos 5º da LINDB e 6º do ECA), assinala o seguinte:
O fim social é o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituirão a razão de sua composição; é, portanto, o bem social, que pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de interesses etc. O intérprete-aplicador poderá: a) concluir que um caso que se enquadra na lei não deverá ser por ela regido porque não está dentro de sua razão, não atendendo à finalidade social; e b) aplicar a norma a hipóteses fáticas não contempladas pela letra da lei, mas nela incluídas, por atender a seus fins. Consequentemente, fácil será perceber que comando legal não deverá ser interpretado fora do meio social presente; imprescindível será adaptá-lo às necessidades sociais existentes no momento de sua aplicação. Essa diversa apreciação e projeção no meio social, em razão da ação do tempo, não está a adulterar a lei, que continua a mesma.
Poder-se-á dizer que não há norma jurídica que não deva sua origem a um fim, a um propósito, a um motivo prático. O propósito, a finalidade, consiste em produzir na realidade social determinados efeitos que são desejados por serem valiosos, justos, convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade, oportunos, etc. A busca desse fim social será a meta de todo o aplicador do direito. Com isso, a teleologia social terá um papel dinâmico de impulsão normativa. Se assim não fosse, a norma jurídica seria, na bela e exata expressão de Rudolf von Ihering, um “fantasma de direito”, uma reunião de palavras vazias. Sem conteúdo substancial esse “direito fantasma”, como todas as assombrações, viveria uma vida de mentira, não se realizaria, e a norma jurídica – é ainda o mestre de Gottingen quem diz – foi feita para realizar. A norma não corresponderia a sua finalidade; seria, no seio da sociedade, elemento de desordem e instrumento de arbítrio. Viveria numa “torre de marfim, isolada, à margem das realidades, autossuficiente, procurando em si mesma o seu próprio princípio e o seu próprio fim” . Abstraindo-se do homem e da sociedade, alhear-se-ia de sua própria finalidade e de suas funções, passaria a ser uma pura ideia, criação cerebrina e arbitrária. Deveras, a norma se encontra no meio social, ora sofrendo injunções de fatores sociais, ora sobre eles reagindo e orientando. Os fins a serem atendidos são impostos à norma jurídica pela realidade social concreta. Sociologicamente, poder-se-ia até dizer que são os fins sociais que criam a norma jurídica. A norma jurídica está imersa no social e uma simbiose se opera entre ambos. Parece útil lembrar, como o faz Leonardo van Acker, que, uma vez gerada, não fica a norma estagnada, mas continua a sua própria vida, tendendo à autoconservação pela integração obrigatória em que mantém os fatos da sua alçada e os valores com que os pretende reger. (DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução às normas do direito brasileiro interpretada . 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 187⁄188)
Sob tal perspectiva, sobressai a norma inserta na Constituição da República de 1988 que consagrou a doutrina da proteção integral e prioritária das crianças e dos adolescentes. Confira-se:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade , o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão . (redação anterior à Emenda Constitucional 65⁄2010, que incluiu a proteção aos direitos do “jovem”)
A citada doutrina – também chamada de princípio da proteção integral – significa que “as pessoas em desenvolvimento, isto é, crianças e adolescentes, devem receber total amparo e proteção das normas jurídicas, da doutrina, jurisprudência, enfim de todo o sistema jurídico” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 578⁄579).
Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069⁄90 – reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo –, que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, assim traduzido na Convenção da Assembleia Geral da ONU de 20 de novembro de 1989:
Artigo 3
I. Todas as ações relativas à criança, sejam elas levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar primordialmente o melhor interesse da criança.
(…) (ratificada pelo Brasil pelo Decreto 99.710⁄90)
Como bem pondera Rodrigo da Cunha Pereira, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (in op. cit., p. 588⁄589). De acordo com o citado autor:
O princípio aceita ponderação, relativização e deve ser compatibilizado com outros princípios. In casu , deve ser conjugado com princípio da afetividade, da responsabilidade e dignidade humana. O princípio do melhor interesse é “um critério significativo na decisão e na aplicação da lei. Isso revela um modelo que, a partir do reconhecimento da diversidade, tutela os filhos como seres prioritários nas relações paterno-filiais e não apenas a instituição familiar em si mesma” (FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 125).
O que interessa na aplicação deste princípio fundamental é que a criança⁄adolescente, cujos interesses e direitos devem sobrepor-se ao dos adultos, sejam tratados como sujeito de direitos e titulados de uma identidade própria e também uma identidade social. E, somente no caso concreto, isto é, em cada caso especificamente, pode-se verificar o verdadeiro interesse sair da generalidade e abstração da efetivação ao Princípio do Melhor Interesse. Para isso é necessário abandonar preconceitos e concepções morais estigmatizantes. Zelar pelo interesse dos menores de idade é cuidar de sua boa formação moral, social, relacional e psíquica. É preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social. ( In op. cit. , p. 589)
5. No caso vertente, cumpre, de início, transcrever o § 1º do artigo 42 do ECA que estabeleceu, como regra, a impossibilidade da adoção dos netos pelos avós (a chamada adoção avoenga). Confira-se:
Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.
§ 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando.
(…)
A ratio essendi do impedimento legal para a adoção é assim explicado pela doutrina:
A adoção, pela sua própria natureza, por razões de ordem pública e social, para evitar fraudes ou proteger o adotando, ou por outras razões, sempre impôs certas restrições no momento do estabelecimento do vínculo. Admitir a inexistência de qualquer proibição equivaleria a permitir a frustração do próprio objetivo da adoção, que, nos dias atuais, visa colocar um “estranho” na condição de filho. “Estranho” é aquele que não tem vínculos parentais e matrimoniais com o adotante. A expressão “estranho” é para reforçar a ideia de que não existe nenhum vínculo anterior, parental ou matrimonial, entre adotante e adotado.
A eliminação radical de todo vestígio de discriminação entre filhos, no nosso ordenamento jurídico (CF, art. 227, § 6º), diminuiu sensivelmente o capítulo referente a certos impedimentos.
Em consequência, passou o ECA a impedir a adoção por ascendentes e irmãos do adotando (art. 42, § 1º). A proibição nada mais faz do que manter a ordem parental derivada da própria natureza.
A adoção deve ser compreendida como autêntico direito parental e, por isso, já existindo um vínculo natural de parentesco, não teria sentido admitir outro. Ademais, a finalidade da adoção é colocar em família substituta quem não a tem ou quem foi abandonado pela sua própria família natural. Em época precedente ao ECA, admitia-se a adoção por avós. Esta era a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência, na esteira da inexistência de impedimento legal e na ideia de que a adoção atenderia às necessidades dos menores.
Contudo, a inovação estatutária sofre críticas, mas foi bem recepcionada pela doutrina. Reiteradamente, a proibição mencionada, que veda a adoção por “ascendentes e irmãos” (art. 42, § 1º), tem sido aplicada pelos Tribunais, na esteira da impossibilidade jurídica do pedido formulado por avós.
O caminho que tem sido indicado pela doutrina e pela jurisprudência (ao obstar que seja desvirtuada a ascendência por via da adoção, sendo os descendentes parentes biológicos) é a tutela por irmãos ou avós. (SILVA FILHO, Artur Marques da. Adoção : regime jurídico, requisitos, efeitos, inexistência, anulação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 89⁄90)
No mesmo diapasão, colhe-se excerto de texto da lavra de Galdino Augusto Coelho Bordallo, segundo o qual:
O § 1º do art. 42 do ECA traz a vedação da adoção por ascendentes ou irmãos, que é genérica, não discriminando limite quanto à capacidade do adotando, referindo-se, tão somente, a parentesco próximo. Cuidou o legislador de instituir impedimento total à legitimidade para adotar, a fim de evitar inversões e confusões nas relações de parentesco.
A proteção às crianças e adolescentes deverá ser exercida, em primeiro lugar, pela família, conforme dispõe o art. 4º do ECA. Toda e qualquer pessoa está inserida dentro de uma família, mesmo que não mantenha nenhum contato com os demais membros que a compõem. Quando ocorre a perda dos pais biológicos, a criança e o adolescente deverão ser protegidos e acolhidos pelos demais membros de sua família, qualquer que seja o grau de parentesco, a denominada família extensa ou ampliada, cuja conceituação legal se encontra no parágrafo único do art. 25 do ECA (acrescentado pela Lei 12.010⁄2009). Normalmente este acolhimento é dado pelos avós ou irmãos mais velhos, que são os mais próximos, sendo parentes em 2º grau.
Caso fosse permitida a adoção por estes parentes, haveria um verdadeiro tumulto nas relações familiares, em decorrência da alteração dos graus de parentesco. Em sendo a adoção realizada pelos avós, a criança passaria a ser filho destes, irmão de um de seus pais e de seus tios e tio de seus irmãos e primos. Sendo a adoção realizada por um irmão, passaria a ser filho deste, neto de seus pais, bisneto de seus avós, sobrinho de outros irmãos, irmão de seus sobrinhos. Como se vê, haveria alteração de todos os graus de parentesco, o que tumultuaria demasiadamente as relações familiares. Foi, certamente, pensando neste tumulto, entre outras coisas, que o legislador criou o impedimento.
Essa proibição é uma forma de não se alterar as relações de afeto existentes no seio familiar. A situação artificial que seria trazida pela adoção realizada pelos avós ou irmãos tumultuaria a família, trazendo um desequilíbrio às suas sadias relações. Existindo afeto entre os membros da família, não será a permissão da adoção que fará com que este sentimento se torne mais forte.
Com esta possibilidade de adoção, surgiriam problemas de novos impedimentos matrimoniais, com a manutenção dos impedimentos anteriormente existentes, além de questões sucessórias. Deve-se levar em conta que, em muitas situações, a intenção de avós em adotar um neto para reduzir a quota da legítima de seu filho pode ser o motivador da decisão, o que será uma distorção dos fundamentos da adoção.
Ademais, a proteção que se deseja com a colocação da criança⁄adolescente em família substituta mediante adoção, já estará sendo suprida pelos avós e pelos irmãos ao assumirem o cuidado daqueles, não estando eles ao desamparo. Para a regularização da situação de fato que se criou com a morte, desaparecimento ou total irresponsabilidade dos pais, podem os avós e irmãos utilizar os institutos da guarda ou da tutela, conforme exigir a situação fática que se apresente. Estes são os institutos ideais para os parentes. (BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Curso de direito da criança e do adolescente : aspectos teóricos e práticos ⁄ Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (coordenação) – 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 271⁄272)
Sem descurar do relevante escopo social da norma proibitiva da adoção de descendente por ascendente, constata-se a existência de precedentes da Terceira Turma que mitigam sua incidência em hipóteses excepcionais envolvendo crianças e adolescentes, e desde que verificado, concretamente, que o deferimento da adoção consubstancia a medida que mais atende ao princípio do melhor interesse do menor, sobressaindo reais vantagens para o adotando.
Com efeito, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.448.969⁄SC, a Terceira Turma, com base nos princípios da dignidade humana e do melhor interesse do menor, considerou legal a adoção de neto por avós que, desde o nascimento, exerciam a parentalidade socioafetiva e haviam adotado a mãe biológica aos oitos anos de idade e grávida do adotando. Confira-se:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO C⁄C DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR MOVIDA PELOS ASCENDENTES QUE JÁ EXERCIAM A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SENTENÇA E ACÓRDÃO ESTADUAL PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MÃE BIOLÓGICA ADOTADA AOS OITO ANOS DE IDADE GRÁVIDA DO ADOTANDO. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA DE VIGÊNCIA AO ART. 535 DO CPC. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. SUPOSTA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 39, § 1º, 41, CAPUT , 42, §§ 1º E 43, TODOS DA LEI N.º 8.069⁄90, BEM COMO DO ART. 267, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INEXISTÊNCIA. DISCUSSÃO CENTRADA NA VEDAÇÃO CONSTANTE DO ART. 42, § 1º, DO ECA. COMANDO QUE NÃO MERECE APLICAÇÃO POR DESCUIDAR DA REALIDADE FÁTICA DOS AUTOS. PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA GARANTIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. ART. 6º DO ECA. INCIDÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DA NORMA FEITA PELO JUIZ NO CASO CONCRETO. POSSIBILIDADE. ADOÇÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.
1. Ausentes os vícios do art. 535, do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração.
2. As estruturas familiares estão em constante mutação e para se lidar com elas não bastam somente as leis. É necessário buscar subsídios em diversas áreas, levando-se em conta aspectos individuais de cada situação e os direitos de 3ª Geração.
3. Pais que adotaram uma criança de oito anos de idade, já grávida, em razão de abuso sexual sofrido e, por sua tenríssima idade de mãe, passaram a exercer a paternidade socioafetiva de fato do filho dela, nascido quando contava apenas 9 anos de idade.
4. A vedação da adoção de descendente por ascendente, prevista no art. 42, § 1º, do ECA, visou evitar que o instituto fosse indevidamente utilizado com intuitos meramente patrimoniais ou assistenciais, bem como buscou proteger o adotando em relação a eventual “confusão mental e patrimonial” decorrente da “transformação” dos avós em pais .
5. Realidade diversa do quadro dos autos, porque os avós sempre exerceram e ainda exercem a função de pais do menor, caracterizando típica filiação socioafetiva.
6. Observância do art. 6º do ECA: na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
7. Recurso especial não provido. ( REsp 1.448.969⁄SC , Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 21.10.2014, DJe 03.11.2014)
No voto condutor do julgado, o eminente Ministro relator procedeu às seguintes ponderações:
Tampouco cabe falar em qualquer um dos outros argumentos que levaram o legislador a editar a letra nua e crua do art. 42, 1º, do ECA, pois o Estudo Social foi claro ao afastar o perigo de confusão mental e emocional que tal adoção geraria no menor, em razão de ter sido sempre criado como filho e assim ver a situação; não há nenhuma inversão emocional no presente caso, pois desde sempre sua mãe foi sua irmã.
Frise-se mais uma vez: o caso é de filiação socioafetiva.
Em verdade, em momento algum, pôde essa mãe criança criar laços afetivos maternais com seu filho, porquanto nem sequer deixou de ser criança à época do parto. A proclamada confusão genealógica gritada pelo recorrente aqui não existe.
Lembre-se da diferença de apenas 9 anos entre eles.
Decerto que também não se pode usar o argumento econômico ao caso concreto, visto que o casal de adotantes de riqueza possuem apenas sua alma, não havendo como poder o menor ser beneficiado com provável pensão significante, pois os seus pais possuem mais 50 filhos adotados.
De tal forma, nenhum dos argumentos trazidos pelo legislador originário do ECA, art. 42, § 1º, é aplicável ao caso concreto.
Em verdade, são incabíveis por se tratar de situação distinta da contida no espírito da lei.
(…)
No caso concreto, é inquestionável a possibilidade da mitigação do art. 42, § 1º, do ECA, tal como feito pelo acórdão local, levando-se em conta o disposto no art. 6º do mesmo Estatuto diante da realidade da família aqui trazida.
O que buscam os adotantes agora é apenas a adequação legal de situação de fato vivida pelo menor desde seu nascimento, há mais de 16 anos, e, como consequência, o reconhecimento da sua filiação socioafetiva.
Em 27.2.2018, tal exegese foi confirmada pelos integrantes da Terceira Turma, em caso similar, no qual os avós pleitearam a adoção de neto cuja concepção decorrera de violência sexual praticada contra sua mãe biológica, que, em razão do grave trauma psicológico, nunca exercera a maternidade do filho:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ADOÇÃO POR AVÓS. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. PADRÃO HERMENÊUTICO DO ECA.
01 – Pedido de adoção deduzido por avós que criaram o neto desde o seu nascimento, por impossibilidade psicológica da mãe biológica, vítima de agressão sexual.
02 – O princípio do melhor interesse da criança é o critério primário para a interpretação de toda a legislação atinente a menores, sendo capaz, inclusive, de retirar a peremptoriedade de qualquer texto legal atinente aos interesses da criança ou do adolescente, submetendo-o a um crivo objetivo de apreciação judicial da situação específica que é analisada.
03. Os elementos usualmente elencados como justificadores da vedação à adoção por ascendentes são: i) a possível confusão na estrutura familiar; ii) problemas decorrentes de questões hereditárias; iii) fraudes previdenciárias e, iv) a inocuidade da medida em termos de transferência de amor⁄afeto para o adotando.
04. Tangenciando à questão previdenciária e às questões hereditárias, diante das circunstâncias fática presentes – idade do adotando e anuência dos demais herdeiros com a adoção, circunscreve-se a questão posta a desate em dizer se a adoção conspira contra a proteção do menor, ou ao revés, vai ao encontro de seus interesses.
05. Tirado do substrato fático disponível, que a família resultante desse singular arranjo, contempla, hoje, como filho e irmão, a pessoa do adotante, a aplicação simplista da norma prevista no art. 42, § 1º, do ECA, sem as ponderações do “prumo hermenêutico” do art. 6º do ECA, criaria a extravagante situação da própria lei estar ratificando a ruptura de uma família socioafetiva, construída ao longo de quase duas décadas com o adotante vivendo, plenamente, esses papéis intrafamiliares.
06. Recurso especial conhecido e provido. ( REsp 1.635.649⁄SP , Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27.02.2018, DJe 02.03.2018)
Por oportuno, destacam-se os seguintes trechos do voto condutor do aludido precedente, que revelam os elementos jurídicos e fáticos justificadores da flexibilização da regra geral do § 1º do artigo 42 do ECA:
01. Principio por dizer que concordo, em parte, com a assertiva do Ministério Público Federal, de que não é dado ao Poder Judiciário se imiscuir em ponderação de princípios, se o próprio legislador já o fez, e normatizou práticas sociais à luz dos valores sociais que entendeu, devam ser preponderantes.
02. Contudo, quando é o próprio legislador quem outorga ao Estado-Juiz a possibilidade de, em linha de excepcionalidade, suplantar ou suplementar normas em nome do melhor interesse do menor, diz, implicitamente, que embora tenha regulado as relações intrafamiliares, há inúmeras circunstâncias, ditadas pela imprevisível dinâmica social, que podem fazer o sistema protetivo legislado conspirar contra os melhores interesses do menor e do adolescente, a quem pretende proteger.
(…)
05. O princípio do melhor interesse da criança é o critério primário para a interpretação de toda a legislação atinente a menores, sendo capaz, inclusive, de retirar a peremptoriedade de qualquer texto legal atinente aos interesses da criança ou do adolescente, submetendo-o a um crivo objetivo de apreciação judicial da situação específica que é analisada.
(…)
07. Assim, tenho que o pedido inicial merece acurada análise para desvelar se os superiores interesses do menor são efetivamente atendidos pela norma de regência ou, se na hipótese em comento, essa norma conspira contra os interesses daquele que busca proteger.
08. Para tanto, é preciso buscar os fins teleológicos perseguidos pelo legislador, quando fixou a vedação de adoção por ascendentes.
1.1. Do lastro teleológico que informa a vedação de adoção por ascendente
09. Usualmente são elencados como elementos justificadores da vedação à adoção por ascendentes a prevenção de i) confusões na estrutura familiar; ii) problemas decorrentes de questões hereditárias; iii) fraudes previdenciárias e, iv) a inocuidade da medida em termos de transferência de amor⁄afeto para o adotando.
10. Analisando esses “objetos de proteção” da norma restritiva, tangencio qualquer debate relativo à questão previdenciária e às questões hereditárias, tanto pela idade do adotando – hoje prestes a completar 18 anos –, quanto pela anuência dos herdeiros diretos do casal adotante, para com o pedido.
11. Restringe-se a discussão, então, ao que efetivamente releva na hipótese: dizer se a adoção conspira contra a proteção do menor, ou ao revés, se essa vai ao encontro de seus interesses.
12. Sob esse prisma, de se ver que a proibição da adoção de descendente por ascendente, que está prevista no art. 42 § 1º do ECA, têm por substrato finalístico principal, a necessidade de se evitar indevida confusão na estrutura familiar pela qual neto⁄bisneto deixaria essa condição, passando a ser filho dos avós, irmão de tios; tio de primos etc.
13. Realmente, é fácil se imaginar a usual confusão que provocaria uma adoção por ascendentes, dentro de uma estrutura família tradicional e já formatada, pois as relações intrafamiliares, que passam por normas hierárquicas e de organização internas, passariam a sofrer grande turbulência, que tenderia a erodir e embaralhar, na mente do infante, os papéis familiares.
14. Daí a renitência legislativa em permitir a adoção por ascendentes.
15. Na hipótese citada, usualmente se analisam adoções que ocorrem após algum tempo de nascimento do adotando, quando sua inserção em um novo ambiente familiar decorre de problemas em sua família originária (óbitos, separações, abandono e outras situações de estresse).
16. Mesmo quando a recepção da criança no novo núcleo familiar é precocemente realizada, se os próprios familiares fazem e agem com as distinções internas próprias das famílias ampliadas, uma posterior mudança no status familiar interno, traz inevitável esgarçamento dessas relações pré-constituídas, com graves consequências para o equilíbrio psicológico do adotante, em área tão sensível para a psique, como a família e a ideia de pertencimento.
17. No entanto, essa regra social, facilmente compreendida, pode encontrar algumas exceções quanto aos superiores interesses dos menores, que devem orientar o interprete.
18. P H A M, foi criado, desde a tenra idade, dentro do mesmo núcleo familiar e, pelos relatos trazidos pelos adotantes, criado como se filho fosse.
19. Nessa linha para o adotando, seus pais eram, efetivamente, os recorrentes, sendo irrelevante o real status biológico dos mesmos, e de igual forma, sua mãe biológica e seu tio, eram tidos como irmãos, com as relações próprias desses papéis familiares.
20. Criado dessa forma – como se filho fosse – pelos dez anos que antecederam o pedido de adoção, inevitável se ter por consolidada, para este grupo familiar, a condição de P H A M dentro do núcleo familiar: filho e irmão.
21. Aqui, todo o substrato teleológico que dá suporte à vedação de adoção por ascendentes, fica esvaziado, pois a confusão e desequilíbrio psicológico e até mesmo social ocorrerá, na hipótese dessa relação ser descontinuada.
22. Hoje, há uma família consolidada – os recorrentes, os filhos biológicos e o adotante –, e note-se, isso decorreu, originalmente, de uma tragédia familiar que foi contornada com o amor desprendido pelo casal adotante e a aceitação incondicional do novo membro da família, pelos filhos dos recorrentes-adotantes.
23. Sob esse cenário, tenho que os objetivos teleológicos que informam a vedação de adoção por ascendentes não se mostrarem presentes na hipótese sob análise.
24. Ao revés, a aplicação simplista da norma, sem as ponderações do “prumo hermenêutico” do art. 6º do ECA, criaria a extravagante situação da própria lei estar ratificando a ruptura de uma família de fato, construída ao longo de quase duas décadas com os papéis intrafamiliares bem definidos.
25. Em outra linha de argumentação, cabe ponderar sobre a motivação de adotantes que, não obstante já deterem a guarda do menor, buscaram incrementar essa relação, via adoção, para uma situação de parentalidade socioafetiva, vale dizer, pretendiam agregar à assistência material e psicológica o desejo anímico da maternidade⁄paternidade em relação a seu neto, criado como se filho fosse.
26. Não há motivação maior do que está: a de cunho íntimo, pois os demais poderes próprios da parentalidade já eram⁄são exercidos pelos recorrentes, que agora buscam cristalizar, tão-só, a relação de fato, que se enquadra perfeitamente na parentalidade socioafetiva, pois nela se acha, inequivocamente, a “posse do estado de filho”.
28. Ora, se na busca do melhor interesse da criança⁄adolescente, alguém, in casu , os avós, querem subir um tom na relação já existente, para dar a máxima inserção familiar possível ao menor, por certo, isso configura o melhor interesse da criança, mormente quando se evidencia pelas circunstâncias, que não há interesses escusos nesse pleito.
29. Assim tenho que o art. 42, § 1º, submetido, como deve estar, ao arcabouço principiológico de proteção e preservação do melhor interesse da criança e do adolescente, pode ser superado quando suas bases teleológicas são frágeis, ou mesmo inexistentes, como na espécie, pois é certo, pelo quadro traçado na origem, que os recorrentes foram além do agir por dever, mas potencializaram, numa construção diária, as relações próprias entre avós e netos (quando aqueles detém a guarda), para construírem uma relação filial, que foi igualmente assumida pelo resto do grupo familiar.
Mais recentemente, sobreveio julgado da Terceira Turma, que, por maioria, manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Amazonas, que indeferiu o pedido de adoção deduzido por bisavô em relação a bisneto maior de idade. Eis a ementa do referido precedente:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. DIREITO CIVIL. ADOÇÃO ENTRE BISNETO E BISAVÔ. IMPOSSIBILIDADE. ADOTANDO MAIOR DE IDADE. CÓDIGO CIVIL, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) E LEI NACIONAL DA ADOÇÃO. PRIMAZIA DA PONDERAÇÃO FEITA PELO LEGISLADOR. VEDAÇÃO DA ADOÇÃO ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE. ART. 42, § 1º, DO ECA. VIOLAÇÃO LITERAL A DISPOSITIVO DE LEI. ART. 966, INCISO V, CPC.
1. Controvérsia, em sede de ação rescisória julgada procedente, acerca da possibilidade de adoção do bisneto pelo bisavó, em face do disposto no art. 42, § 1º, do ECA.
2. Com o advento da Lei 12.010⁄09 (Lei Nacional da Adoção), o sistema de adoção no Brasil, em relação a maiores de idade, foi também submetido ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive diante da ausência de detalhamento normativo no Código Civil Brasileiro.
3. O art. 42, § 1º, do ECA, estatui, como regra geral, a proibição da adoção de descendentes por ascendentes, objetivando tanto a preservação de uma identidade familiar, como para evitar a eventual ocorrência de fraudes.
4. O Superior Tribunal de Justiça já conferiu alguma flexibilidade ao disposto no art. 42 do ECA quando há, como norte interpretativo principiológico, direito ou interesse prevalente de modo, mediante juízo de ponderação, a se afastar a literal vedação contida no art. 42, § 1º, do ECA, de adoção de descendente por ascendente.
5. A relevante existência de relação paterno-filial entre os réus, mais intensa quiçá àquela ordinariamente mantida entre bisavô e bisneto, que, ainda assim, se faz próxima e naturalmente especial, não é suficiente para se afastar a ponderação já realizada pelo legislador ao vedar a adoção de descendente por ascendente.
6. Ausência de interesse a ser especialmente protegido na espécie.
7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
8. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. ( REsp 1.796.733⁄AM , Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. p⁄ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 27.08.2019, DJe 06.09.2019)
No voto condutor do julgamento majoritário, o eminente Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – acompanhado pelos Ministros Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro – assim explicitou as razões do não cabimento da mitigação da proibição da adoção avoenga na hipótese:
Na espécie, o adotando, quando do ajuizamento da ação de adoção, era maior, e o substrato fático considerado para o deferimento do pedido de adoção não fora outro senão o exercício da paternidade socioafetiva pelo bisavô, desde o nascimento do seu bisneto.
Esta Corte Superior tem conferido alguma flexibilidade à interpretação do disposto no art. 42 do ECA quando há, como norte interpretativo, o princípio do melhor interesse do menor, como reconhecido no REsp 1.635.649⁄SP, sob a relatoria da e. Min. Nancy Andrighi, ou, ainda, quando a conformação dos fatos sobre os quais a norma está a incidir, além do interesse do menor, consubstancia um panorama em que a aplicação literal do art. 42, § 1º, do ECA revele maltrato a determinados princípios e direitos, como ocorrera no REsp 1.448.969⁄SC, da relatoria do e. Min. Moura Ribeiro, em que o pedido de adoção é formulado pelos avós que haviam adotado criança grávida aos oito anos de idade decorrente de abuso sexual, tendo passado a exercer a paternidade socioafetiva do neto dado à luz quando a genitora contava com nove anos de idade.
Não deixo de considerar, ainda, que se está no âmbito restrito de uma ação rescisória, impondo-se, pois, que se analisem as teses formuladas na ação desconstitutiva ajuizada pelos avô e tio-avô do adotado (filhos do adotante):
a) a adoção de descendente por ascendente seria vedada, violando-se literalmente os arts. 42, § 1º, do ECA e 1.619 do CCB;
b) a existência de colusão entre adotante e adotado para fraudar a lei, garantindo-se a este direitos hereditários que ordinariamente não possuiria.
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, ao julgar procedente o pedido rescisório, firmou compreensão no sentido da literal violação de lei e o voto do eminente relator o reforma, reconhecendo inexistir violação ao art. 42 do ECA e, ainda, qualquer demonstração acerca de colusão entre as partes.
(…)
A ausência de regras específicas acerca da adoção de maiores de idade faz aplicável todas aquelas normas gerais presentes no ECA em relação à adoção de menores.
O art. 42, § 1º, do ECA, de sua vez, é regra geral a estabelecer em favor da preservação de uma identidade familiar e também para se evitar, eventualmente, a ocorrência de fraudes, de modo a que direitos sejam alcançados a entes da família que, de ordinário, não seriam por eles alcançados.
O dispositivo não fora especialmente concebido por força da proteção das crianças ou adolescentes.
Não descuido dos fatos bem consolidados a sustentarem a filiação socioafetiva entre o bisavô e o bisneto, pois efetivamente são muito relevantes, sendo que o adotado sempre viveu sob a guarda do bisavô, isto desde o seu nascimento nos idos de 1994.
Apesar disto, tenho que, exatamente por força deste cuidado e desta relação afetiva intensa já existente, notadamente dentro de uma relação entre bisavô e bisneto, tão próxima e naturalmente especial, e, ainda, em face da inexistência de interesse a ser especialmente protegido na espécie, como o melhor interesse de menor, mostra-se inviável a desconsideração da expressa proibição prevista na lei para, mediante interpretação flexível garantida por esta Corte a casos especiais, estender-se a todos os casos de paternidade⁄filiação socioafetiva a possibilidade de adoção de um descendente por um ascendente.
Já há muito esta Corte Superior sobreleva os vínculos de afinidade e afetividade protegendo a personalidade dos indivíduos e a sua dignidade através da devida adequação dos elementos registrais atinentes à filiação, corrigindo-se situações que violam sobremaneira a dignidade dos requerentes, o seu entendimento como pessoa.
Não logro identificar tal situação na pessoa dos interessados na presente adoção.
A desconsideração da regra proibitiva em questão a um só passo alteraria sobremaneira a linha sucessória, trazendo para a especial posição de herdeiro necessário daquele que dificilmente seria chamado à sucessão e, ainda, rearranjaria o relacionamento familiar de modo que o bisneto passaria a ser tio da sua mãe e irmão do seu avô.
O instituto da adoção, na espécie, tendo em vista a existência de parentesco entre adotante e adotado não visa, em sua essência, à inserção do adotante em uma família, pois dela ele já faz parte.
A adoção aqui, visaria, sim, a colocar em sintonia, de um lado – consoante o eminente relator -, o signo formal que enlaça adotante e adotado e, de outro, o sentimento real e mútuo acerca da existência de uma relação paternal⁄filial.
Com a vênia daqueles que entendem de forma diversa, a duradoura criação, a educação, o sustento, o cuidado afetuoso diário, o compartilhamento de sonhos, de crises e conquistas e o reconhecimento mesmo, entre adotante e adotado, da existência de uma relação qualificada pelo amor pode ocorrer plenamente dentro de uma relação avoenga, não sendo mesmo necessário para fazer significar o sentimento que existe entre o bisavô e o bisneto o esvaziamento de regra proibitiva vigente do ordenamento acerca da adoção de descendentes por ascendentes.
A doutrina civilista tem, ao tratar da presente questão, no mais das vezes, feito menção à proibição e concluído que a melhor solução é exatamente o exercício da guarda pelos ascendentes.
Em alguns casos, destaca-se o prejuízo aos filhos pela adoção de um neto ou bisneto, alterando-se, sobremaneira, a linha sucessória, além de, excepcionalmente, visualizarem alguns transtornos na compreensão das posições familiares.
(…)
O Superior Tribunal de Justiça, quando chamado a interpretar o art. 42, § 1º, do ECA, houve por bem deixar claro que a aplicação da regra poderia ceder espaço ao reconhecimento do direito à adoção quando o melhor interesse do menor assim o orientasse, atentando, pois, aos princípios que fazem parte do núcleo essencial de proteção do direito da criança e do adolescente, afastando a norma quando se revelasse prejudicial ao interesse do menor.
É exatamente a hipótese analisada no precedente citado pelo relator sob a cuidadosa relatoria da e. Min. Nancy Andrighi (REsp 1.635.649⁄SP), em que se reconheceu: “O princípio do melhor interesse da criança é o critério primário para a interpretação de toda a legislação atinente a menores, sendo capaz, inclusive, de retirar a peremptoriedade de qualquer texto legal atinente aos interesses da criança ou do adolescente, submetendo-o a um crivo objetivo de apreciação judicial da situação específica que é analisada.”
(…)
Do mesmo modo, o Min. Moura Ribeiro, analisando uma das mais graves e delicadas situações a que um ser humano pode ser submetido, a violência sexual e, mais grave ainda, a violação de uma criança, reconheceu a possibilidade de os pais da mãe adotada virem a também adotar o filho que esta estava a gestar, preservando com isso os mais básicos interesses das duas crianças envolvidas.
(…)
O relator do referido recurso especial, no seu voto, sobreleva, é bem verdade, a relação paterno-filial socioafetiva entre avós e neto – adotantes e adotado -, mas a contextualiza na óptica de duas crianças e das dificuldades que, não fossem já os traumas sofridos pela menina-mãe, decorreriam de sua apresentação na sociedade como mãe de outra criança e, ainda, da mácula na psiquê do adotado de se apresentar como neto daqueles que figuram, no diaadia, como seus pais e, ainda, ser fruto da violência cometida a sua mãe.
A situação destes autos, todavia, é diferenciada.
O adotado já se encontrava com mais de 18 anos e, por não ter o seu bisavô ajuizado a ação ainda quando era menor, aparentemente, conviveram normalmente com o fato de o seu bisavô possuir a guarda, que é atributo do poder familiar.
(…)
O quadro fático narrado, consubstanciado nesta relação paternofilial entre bisavô e bisneto, utilizado como fundamento para a adoção quando o adotando já era adulto, com o panorama legal existente, entendo, não poderia fazer flexibilizada a norma disciplinante, inexistindo o norte interpretativo do “melhor interesse do menor” , presente nos precedentes desta Corte a permitirem a adoção dentro de relação avoenga, não se comprazendo, para tanto, o que o eminente relator nominou como “melhor interesse do adotando” , ao menos não para o afastamento da regra proibitiva de que se cuida.
O eminente Ministro Moura Ribeiro, ao acompanhar o voto divergente do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, bem delineou o distinguishing entre o caso líder de sua relatoria – favorável à adoção avoenga (REsp 1.448.969⁄SC) – e a situação fática retratada no REsp 1.796.733⁄AM, no qual se considerou descabida a mitigação do impedimento legal :
Da análise atenta dos fundamentos trazidos pelo eminentes Ministros e dos elementos constantes dos autos, peço vênia ao Ministro Relator para acompanhar a divergência porque a mitigação da norma do § 1º do art. 42 do ECA somente deve ocorrer na hipótese excepcional de adoção envolvendo menor e com esteio no princípio do seu melhor interesse, o que não é caso.
Na espécie, o adotante, além de ser maior de idade, já estava inserido no seio familiar, pois foi acolhido desde terna idade por sua extensa família biológica, representada por seu bisavô, em virtude das dificuldades financeiras e pessoais de sua genitora em o criar, de modo que não vislumbro a ocorrência de ameaça a sua dignidade.
No mais, a relação de socioafetividade pode perfeitamente coexistir com a relação avoenga, sendo que, no caso, diante da ausência de estudo psicossocial não é possível afirmar, com certeza, a presença de posse no estado de filho e como o adotante se amoldou àquela relação familiar, não estando descartada a hipótese de confusão psicológica diante da transformação do seu bisavô em seu genitor.
Ademais, deve-se sempre ter em mente que a adoção é uma medida excepcional e que somente se justifica quando existirem motivos legítimos para ela e que haja vantagens para o adotando, desde que provada de modo inconteste a impossibilidade de restabelecimento da convivência dele com a família natural e extensa, sendo que, no caso, ele já se encontrava nela em plena convivência.
(…)
A adoção, por ser um ato irrevogável, traz como consequência o rompimento do vínculo jurídico com a família biológica, o que cria, no caso, uma situação inusitada de inserção do adotante no mesmo núcleo familiar biológico com o qual teria de ter os laços rompidos, o que se mostra socialmente impossível.
Não é novidade nos dias atuais, encontrarmos a situação de avós, por uma série de motivos, exercendo na prática o poder familiar, atuando diretamente na criação e educação dos netos. E mesmo que exista relação socioafetiva entre eles, não se tratando de hipótese de menor cujo seu melhor interesse justifique a adoção, deve ser observada a vedação legal que proíbe que ela se faça por ascendente e descendente, sob pena de criar um precedente jurisprudencial perigoso.
A adoção pretendida por A, ao invés de proporcionar reais vantagens para L, criará uma situação de quebra da harmonia familiar, pois eles estão litigando respectivamente com seus filhos e seus avós paternos. Operar-se-á, também, uma confusão entre os graus de parentesco, inobservando a ordem natural existente entre os parentes, pois L passará a ser irmão de seus avós e tio de sua mãe, bem como haverá uma indigesta alteração da ordem de vocação hereditária, circunstâncias que o legislador visou impedir.
Finalmente, como bem assinalou o Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, o Recurso Especial nº 1.448.969⁄SC, de minha relatoria, julgado por esta Turma no ano de 2014, não se aplica ao presente feito, que envolve pessoa maior de idade, que tinha 20 anos quando foi formulado o pedido de sua adoção pelo seu bisavô.
Naquele julgado de minha relatoria, partindo-se da premissa de atendimento do melhor interesse da criança e do adolescente, entendeu-se possível a adoção de neto por avós, na situação particularíssima e peculiar, na qual estes últimos haviam adotado a mãe biológica de seu neto aos oito anos de idade, quando já estava grávida do adotado em virtude de abuso sexual e jamais enxergou o seu filho como tal, mas com um irmão, segundo a prova ali produzida.
Reitere-se, pois, que aquele caso concreto mostrou situações que não se amoldam a ora trazida em discussão, quais sejam: os avós já exerciam, com exclusividade, as funções de pai e mãe do neto desde o seu nascimento; havia filiação socioafetiva comprovada por estudo psicossocial entre neto e avós; o adotando sabendo de sua origem biológica, reconhecia os adotantes como pais e tratava sua mãe biológica como irmã mais velha; tanto o adotando quanto sua genitora biológica concordaram expressamente com a adoção, inexistindo conflito familiar; não havia perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; e não havia predominância de interesses econômico na pretensão da adoção. E a vocação hereditária não sofreria prejuízos como os retratados nestes autos.
Nesse quadro, vislumbra-se que a unanimidade dos integrantes da Terceira Turma não controvertem sobre a possibilidade de mitigação da norma geral impeditiva contida no § 1º do artigo 42 do ECA – de modo a se autorizar a adoção avoenga – em situações excepcionais em que: (i) o pretenso adotando seja menor de idade; (ii) os avós (pretensos adotantes) exerçam, com exclusividade, as funções de mãe e pai do neto desde o seu nascimento; (iii) a parentalidade socioafetiva tenha sido devidamente atestada por estudo psicossocial; (iv) o adotando reconheça os adotantes como seus genitores e seu pai (ou sua mãe) como irmão; (v) inexista conflito familiar a respeito da adoção; (vi) não se constate perigo de confusão mental e emocional a ser gerada no adotando; (vii) não se funde a pretensão de adoção em motivos ilegítimos, a exemplo da predominância de interesses econômicos; e (viii) a adoção apresente reais vantagens para o adotando.
6. Nessa linha, penso que tal exegese deve ser encampada por esta Quarta Turma, por se mostrar consentânea com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, fim social objetivado pela Constituição da República de 1988 e pela Lei 8.069⁄90, conferindo-se, assim, a devida e integral proteção aos direitos e interesses das pessoas em desenvolvimento, cuja vulnerabilidade e fragilidade justificam o tratamento especial destinado a colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência ou opressão.
7. Na hipótese dos autos, consoante devidamente delineado pelo Tribunal de origem: (i) cuida-se de pedido de adoção de criança nascida em 17.3.2012, contando, atualmente, com sete anos de idade; (ii) a pretensão é deduzida por sua avó paterna e seu avô por afinidade (companheiro da avó há mais de trinta anos); (iii) os adotantes detém a guarda do adotando desde o seu décimo dia de vida, exercendo, com exclusividade, as funções de mãe e pai da criança; (iv) a mãe biológica padece com o vício de drogas, encontrando-se presa em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes, não tendo contato com o filho desde sua tenra idade; (v) há estudo psicossocial nos autos, atestando a parentalidade socioafetiva entre os adotantes e o adotando; (vi) o lar construído pelos adotantes reúne as condições necessárias ao pleno desenvolvimento do menor; (vii) o adotando reconhece os autores como seus genitores e seu pai (filho da avó⁄adotante) como irmão; (viii) inexiste conflito familiar a respeito da adoção, contra qual se insurge apenas o Ministério Público estadual (ora recorrente); (ix) o menor encontra-se perfeitamente adaptado à relação de filiação de fato com seus avós; (x) a pretensão de adoção funda-se em motivo mais que legítimo, qual seja, desvincular a criança da família materna, notoriamente envolvida em criminalidade na comarca de Navegantes – SC, o que já resultou nos homicídios de seu irmão biológico de apenas nove anos de idade e de primos adolescentes na guerra do tráfico de entorpecentes; e (xi) a adoção apresenta reais vantagens para o adotando, que poderá se ver livre de crimes de delinquentes rivais de seus parentes maternos.
8. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2016⁄0051218-8
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.587.477 ⁄ SC
Números Origem: 00063295120128240135 00288985820158240000 135120063291 20140940219 20140940219000100 20140940219000200

PAUTA: 06⁄02⁄2020 JULGADO: 06⁄02⁄2020
SEGREDO DE JUSTIÇA
Relator
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro MARCO BUZZI
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. MARCELO ANTÔNIO MUSCOGLIATI
Secretária
Dra. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Família – Relações de Parentesco
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
Após o voto do relator negando provimento ao recurso especial, PEDIU VISTA o Ministro Marco Buzzi. Aguardam os Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.587.477 – SC (2016⁄0051218-8)
RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
VOTO-VISTA
O SR. MINISTRO MARCO BUZZI:
Cuida-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea a da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do mesmo Estado que, ao desprover a apelação do Parquet , no bojo de ação de guarda com pedido de regulamentação do direito de visitas e fixação de alimentos, posteriormente transformada em adoção, movida por C. N. da S. (pretenso avô por afinidade) e N. A. de S. (avó paterna) em face de A. G. (genitora) e A. de S. (pai biológico), manteve a sentença de procedência do pedido de adoção de S. J. de S.
O acórdão recebeu a seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. PRELIMINAR ARGUIDA NO PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. NULIDADE. CURADOR ESPECIAL NÃO NOMEADO À RÉ PRESA. MÁCULA AFASTADA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. CPC, ART. 249, § 1º. MÉRITO. DISCUSSÃO NO TOCANTE À POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DE DESCENDENTE POR ASCENDENTE. VEDAÇÃO DO ART. 42, § 1º, DO ECA. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO CONJUNTA COM O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ECA, ART. 6º. PRECEDENTE DO STJ. POSSIBILIDADE, NO CASO, DE ADOÇÃO PELOS AVÓS PATERNOS DO INFANTE. ADOÇÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Opostos aclaratórios (fls. 180-185) foram esses rejeitados pelo acórdão de fls. 187-190.
Nas razões do recurso especial (fls. 195-209), o Ministério Público aponta violação aos artigos 267, inciso VI e 535, inciso II do CPC⁄73; 6º, 39, § 1º, 42, § 1º e 43 da Lei 8.069⁄90.
Sustenta, em síntese: a) negativa de prestação jurisdicional, dada a não supressão das omissões apontadas nos aclaratórios no tocante: a1) ao não reconhecimento, pela Corte local, da incidência dos arts. 39, § 1º, e 43 do ECA e do art. 267, VI, do CPC⁄73, acerca da excepcionalidade da adoção quando a criança ou adolescente não puder ser mantido na família natural ou extensa; a2) à inexistência de benefícios efetivos provindos da adoção entre avós e netos, e, a3) à impossibilidade jurídica da adoção pretendida; b) impossibilidade jurídica da adoção avoenga, em razão da expressa vedação legal; c) “em havendo a possibilidade de se manter o poder familiar dos pais para com o filho, não há que falar em destituição familiar e adoção por parte de outrem, mesmo que os interessados sejam os avós e ainda que sob a justificativa de que, por conta do reiterado envolvimento dos genitores com o uso e com o tráfico de entorpecentes, a responsabilidade pela sua criação sempre pertenceu de modo exclusivo aos requerentes”; d) permitir a adoção de pessoas com vínculo de ascendência e descendência gera confusão patrimonial e abalo psicológico.
Apresentadas contrarrazões ao apelo extremo, recebeu crivo positivo de admissibilidade na origem.
Parecer do Ministério Público Federal às fls. 261-264 pelo conhecimento parcial do recurso e nessa extensão, pelo seu provimento.
O e. Relator no judicioso voto que elaborou, nega provimento ao recurso especial com amparo na proteção integral e prioritária das crianças e adolescentes, no princípio do melhor interesse da criança e com fundamento em precedentes desta Corte Superior que, em julgamento de feitos envolvendo adoção avoenga, deferiram o pedido.
Ante as discussões travadas na sessão de julgamento, pedi vista dos autos para melhor exame da questão.
É o relatório.
Voto
Acompanho o eminente relator para negar provimento ao recurso especial, ainda que com acréscimo de fundamentação.
1. Ressalte-se, de início, relativamente à apontada negativa de prestação jurisdicional, ser inocorrente, na espécie, a ofensa ao art. 1.022, inc. I e II, do CPC⁄15, pois o Tribunal a quo deliberou, de modo claro e fundamentado, acerca das questões atinentes à excepcionalidade da adoção no caso sub judice , bem ainda no tocante às limitações legais incidentes à hipótese, que, contudo, foram sopesadas, prevalecendo o entendimento que melhor amparava o interesse do menor.
Não há falar, portanto, em omissão, sendo certo que os embargos de declaração não constituem via própria para o rejulgamento da causa, não havendo espaço para a análise de inconformismo quanto ao entendimento adotado.
Nesse sentido: REsp 1432879⁄MS , Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 16⁄10⁄2018, DJe 19⁄10⁄2018; EDcl nos EDcl no REsp 1641575⁄RJ , Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25⁄09⁄2018, DJe 01⁄10⁄2018; EDcl no AgInt no REsp 1666792⁄ES , Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 19⁄04⁄2018, DJe 22⁄05⁄2018; AgInt no AREsp 1179480⁄RS , Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27⁄02⁄2018, DJe 06⁄03⁄2018; AgInt no REsp 1598364⁄RS , Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 17⁄08⁄2017, DJe 22⁄08⁄2017; EDcl no AgInt no AREsp 471.597⁄RJ, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 06⁄06⁄2017, DJe 20⁄06⁄2017.
2. Passada a preliminar, a controvérsia reside em saber se é possível a destituição do poder familiar dos genitores e a consequente adoção avoenga, malgrado a vedação legal estatuída no artigo 42, § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ressalta-se que o exame da matéria não reclama o revolvimento do acervo fático-probatório do feito, haja vista que todas as peculiaridades fáticas necessárias ao correto deslinde da questão controvertida estão delineadas nas deliberações judiciais tomadas na origem, motivo pelo qual inaplicável o óbice da súmula 7⁄STJ.
3. Inicialmente, é importante salientar que o caso ora em foco possui específicas particularidades, cujos desdobramentos fáticos inerentes ao feito ensejaram a análise da questão controvertida sob os aspectos jurídico-legal, social e também humano-afetivo, todos sob o prisma do melhor interesse da criança, que se encontra na companhia dos requerentes à adoção desde os 10 (dez) dias de vida, figurando esses como os seus efetivos guardiões por decisão judicial desde os 4 (quatro) meses completos, sendo que, atualmente, a criança conta com quase 8 (oito) anos de idade.
A análise da questão jurídica perpassou, necessariamente, pela verificação acerca da viabilidade da adoção por quem não está inscrito no cadastro nacional de pretensos adotantes quando há aquiescência dos pais biológicos para com o ato adotivo, bem ainda quando o pedido é oriundo de quem detém a tutela ou guarda legal da criança ou é formulada por parente com o qual o adotado mantenha vínculos de afinidade e afetividade.
Pois bem, o caso é deveras peculiar.
Os pretendentes à adoção do infante são a sua avó paterna e o companheiro⁄convivente dessa, o qual foi considerado pelas instâncias precedentes como avô por afinidade da criança.
Na hipótese ora em foco, é incontroverso que a criança foi entregue pela mãe aos cuidados dos requerentes aos 10 (dez) dias de vida após ter empreendido fuga do hospital no qual deu à luz antes da liberação médica. Nos termos da sentença, a criança ” apresentava queimaduras solares em todo o corpo, graves assaduras e sangramento umbilical, provocados pela falta de cuidado e higiene da genitora, que, ainda, mostrava grande desinteresse e resistência na realização do registro do menor “. Essas circunstâncias foram interpretadas pelas instâncias ordinárias como demonstradoras do total desinteresse da genitora em manter quaisquer laços com o menor e denotam o inegável abandono a que foi submetido até os seus parcos 10 (dez) dias de vida, vez que a mãe biológica faltou aos deveres inerentes ao poder familiar que exercia até então.
Foi diante desse cenário desolador que os autores acolheram o menor, prestando-lhe desde tenra idade todos os cuidados para preservar-lhe a vida, a boa saúde, provendo as suas necessidades afetivas e materiais.
Constata-se nos autos, que sob o nº 135.12.002578-0, o Conselho Tutelar da Comarca de Navegantes instaurou um procedimento a fim de verificar a situação de vulnerabilidade em que a criança se encontrava sob os cuidados da mãe, logo após o nascimento, ocasião em que a guarda provisória do menor foi concedida aos requerentes na data de 19⁄07⁄2012 , quando também foi determinado o registro civil de nascimento da criança, o que ensejou o pedido liminar de regulamentação do direito de visitas da genitora, bem como a prestação alimentícia devida por esta ao filho.
Judicialmente, o pleito inicial dos requerentes limitava-se à guarda e responsabilidade, cumulada com regulamentação do direito de visitas e alimentos. O pai biológico, de início, compareceu aos autos para concordar com o deferimento da guarda à avó paterna, bem como proceder ao reconhecimento biológico.
No entanto, tem-se que algumas circunstâncias ensejaram a emenda da inicial para o pedido de adoção, quais sejam: a ausência de qualquer vínculo afetivo dos pais biológicos com o menor; a possibilidade da criança sofrer atentado contra a vida por disputa entre parentes maternos envolvidos com o tráfico de drogas e outros crimes; bem ainda o fato do infante conviver com os requerentes desde os 10 (dez) dias de vida, chamando-os de pai e mãe, somando ao sentimento de carinho e amor que os requerentes afirmam nutrir pelo menino.
Aduziram, os autores, que a adoção pretendida trará reais vantagens ao menor e se fundamenta em motivos legítimos, não sendo a limitação legal constante do artigo 42, § 1º do ECA óbice ao deferimento do pedido, notadamente quando a própria legislação de regência (art. 6º do ECA) estabelece a necessidade de interpretação da lei, de maneira a considerar as peculiaridades da condição da criança, os fins sociais e os direitos individuais, dentre outros, a viabilizar a concessão do pedido de adoção do menor.
As instâncias ordinárias, em uma interpretação voltada ao melhor interesse da criança, com amparo nas inúmeras circunstâncias peculiares do feito, deferiram a adoção pretendida a despeito da vedação legal constante do artigo 42, § 1º do ECA.
Feito esse breve intróito, é pertinente mencionar que a adoção é o instituto jurídico por meio do qual alguém estabelece com outrem laços recíprocos de parentesco em linha reta, por força de uma ficção oriunda da lei.
O caput do art. 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que “a adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando”. Nos termos do § 1º do mesmo dispositivo legal, o consentimento será dispensado em relação à criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar. Nesse ponto, é bom salientar que embora não arrolada no dispositivo em comento, a anuência é igualmente dispensada na hipótese de morte dos pais, causa extintiva do poder familiar, consoante previsto no art. 1635, inciso I, do Código Civil.
A destituição do poder familiar, também denominada de perda, inibição ou cassação do poder familiar, constitui uma pena⁄sanção imposta aos pais que praticarem conduta violadora do dever de guarda, sustento e educação dos filhos menores.
Na hipótese, embora não tenha sido expressamente estabelecida a destituição do poder familiar dos genitores, é certo que esses – principalmente a mãe biológica do infante – cometeram atos característicos do abandono ao filho, a criança que é o foco do pedido ora sob julgamento, o que autoriza, em tese, a deflagração das medidas em evidência. Ademais, mesmo que assim não fosse, consoante se extrai da sentença de fls. 109-114, os genitores foram categóricos em afirmar a concordância para com o ato adotivo, notadamente em virtude da completa ausência de vínculo sócio-afetivo com o menor.
É inegável, porquanto explicitamente estabelecido no artigo 19 do ECA, ser direito da criança a sua criação e educação no seio de sua família, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral e lhe assegure convivência familiar e comunitária, sendo a colocação em família substituta algo excepcional.
Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
É certo também que, por ficção jurídica a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios e o desliga, nos termos do artigo 41 do ECA, de qualquer vínculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
O rompimento dos vínculos, no entanto, não é absoluto, tendo o legislador elencado a hipótese de adoção unilateral por cônjuge ou concubino quando adota o filho do outro (art. 41, § 1º do ECA), bem ainda quando há a adoção por parente com o qual a criança mantenha vínculo de afinidade e afetividade. Essa última encontra-se estabelecida no artigo 50, § 13, inciso II do ECA.
Por oportuno, citam-se todos os incisos do referido dispositivo legal vez que embasarão outros pontos de destaque desse voto:
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
I – se tratar de pedido de adoção unilateral ; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
II – for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
III – oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
O parentesco é o liame que vincula as pessoas oriundas de uma ascendência comum (parentesco consanguíneo), ou jungidas, quer pela transmissão do pátrio poder (parentesco civil), quer pelos efeitos do matrimônio (parentesco afim).
Para melhor explicitar, o parentesco consanguíneo ou natural é aquele existente entre pessoas que mantêm entre si um vínculo biológico, ou de sangue, ou seja, que descendem de um ancestral comum, de forma direta ou indireta.
O parentesco natural é delineado por dois tipos: o parentesco em linha reta estipulado no artigo 1591 do Código Civil , onde são necessariamente consanguíneos, porque há uma relação de descendência (avô, bisavô, pai, filho, neto, bisneto etc.); e o parentesco colateral ou transversal até o quarto grau constante do artigo 1592 do Código Civil , no qual há laços de sangue, mas, não direto, porque as pessoas nestes casos, não descendem umas das outras, mas possuem um antepassado comum (considerada “mesmo tronco genealógico”), como é o caso de irmãos, tios e primos.
Já o parentesco por afinidade é aquele existente entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro, valendo lembrar que marido e mulher e companheiros não são parentes entre si, havendo vínculo de outra natureza, decorrente da conjugalidade ou convivência. Nessa modalidade, o parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes (pais, avós, bisavós etc), aos descendentes (filhos, netos, bisnetos etc) e aos irmãos do cônjuge ou companheiro, consoante expresso pela legislação civil (art. 1595).
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.
Por fim, o parentesco civil é aquele decorrente de outra origem, que não seja a consanguinidade ou a afinidade, como é exemplo a adoção.
Os ensinamentos e as normas oriundas do direito civilista afiguram-se imprescindíveis para a correta interpretação do Estatuto da Criança e Adolescente e, por conseguinte, para o deslinde do caso concreto.
Isso porque o legislador ordinário, ao estabelecer no artigo 50, § 13, inciso II, do ECA que podem adotar os parentes que possuem afinidade⁄afetividade para com a criança, não promoveu qualquer limitação (se aos consanguíneos em linha reta, aos consanguíneos colaterais ou aos parentes por afinidade), a denotar, por esse aspecto, que a adoção por parente (consanguíneo, colateral ou por afinidade) é amplamente admitida quando demonstrado o laço afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, bem como quando atendidos os demais requisitos autorizadores para tanto.
A adoção como já anteriormente mencionado, é apenas um instituto que por ficção jurídica estabelece parentesco civil, a fim de transmudar o poder familiar antes exercido por aquele que foi dele destituído, morreu ou concordou com a adoção por não mais pretender exercer a autoridade sobre a criança ou adolescente.
Embora o legislador estabeleça que a adoção desliga o vínculo com os pais ou parentes, tal observação também, é fictícia, pois além de mantidos os impedimentos matrimoniais, o reconhecimento do estado de filiação jamais se perde, visto ser um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, consoante prevê o artigo 27 do ECA.
Se o legislador admitiu textualmente a adoção por parentes, é certo que nessa hipótese também não haverá o rompimento dos vínculos de parentalidade ou da compreensão de família, haja vista não ter sido impositivo que o adotante também se desligasse dos seus parentes ou familiares, o que seria absolutamente contrário à lógica e ao propósito principal de convivência familiar.
A discussão, no entanto, no caso concreto, ficou limitada à interpretação literal do artigo 42, § 1º do ECA no qual previsto que não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando. Certamente, essa limitação é de ser aplicada quando não houver vínculo já consolidado de afetividade por parte desses parentes, porquanto, nessa hipótese, além de ensejar eventual distorção sucessória, embaraços familiares e supostas fraudes em relação a direito previdenciários e assistenciais, impede ou dificulta o estabelecimento dos vínculos afetivos próprios da adoção. Essas questões afetas às distorções do instituto da adoção, inclusive, já foram sopesadas por esta Corte Superior quando do julgamento do RESP nº 1.448.969⁄SC, Relator Ministro Moura Ribeiro, oportunidade na qual prevaleceu a filiação socio-afetiva, tal como ocorre no caso ora em julgamento.
Confira-se, por oportuno, o seguinte trecho da ementa do mencionado jugado:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO C⁄C DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR MOVIDA PELOS ASCENDENTES QUE JÁ EXERCIAM A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SENTENÇA E ACÓRDÃO ESTADUAL PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
(…)
4. A vedação da adoção de descendente por ascendente, prevista no art. 42, § 1º, do ECA, visou evitar que o instituto fosse indevidamente utilizado com intuitos meramente patrimoniais ou assistenciais, bem como buscou proteger o adotando em relação a eventual “confusão mental e patrimonial” decorrente da “transformação” dos avós em pais.
5. Realidade diversa do quadro dos autos, porque os avós sempre exerceram e ainda exercem a função de pais do menor, caracterizando típica filiação socioafetiva.
6. Observância do art. 6º do ECA: na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
7. Recurso especial não provido.
(REsp 1448969⁄SC, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 21⁄10⁄2014, DJe 03⁄11⁄2014)
Assim, quando amplamente demonstrada a afetividade e afinidade de tais parentes, o que por óbvio inclui os ascendentes (consanguíneos ou por afinidade), desde que preenchidos os demais requisitos legais tais como a diferença mínima de idade, o rompimento dos vínculos sócio-afetivos para com os genitores, e o estabelecimento de novos liames fáticos sócio-afetivos e de parentalidade em graus diversos daqueles constantes na lei, a adoção é plenamente admitida, já que a própria lei, nos termos do artigo 19 do ECA já referido, assegura à criança e adolescente o direito de ser criado e educado no seio de sua família .
O conceito de “família” é amplo, podendo ser definido diferentemente a depender da perspectiva abordada, do viés sociológico, dos costumes e tradições, assim como da cultura e o local em que o estudo do caso ocorre. No âmbito jurídico, o tema possui uma definição mais restrita. Como regra geral, o direito civil considera membros da família apenas as pessoas unidas por relação conjugal ou de parentesco.
Já no âmbito do ECA, a família pode ser natural (comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes) ou extensa⁄ampliada (aquela formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade).
Confira-se, por oportuno, o disposto no artigo 25 do referido normativo:
Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Mais uma vez a imprecisão acerca do que sejam os “parentes próximos” reclama a utilização da legislação civil, a fim de considerar esses os parentes em linha reta ou colateral até o quarto grau, e os parentes por afinidade até o segundo grau (ascendentes, descendentes ou irmãos do cônjuge ou companheiro).
Na hipótese ora em foco, a avó paterna (consanguínea) e o seu companheiro pretendem a adoção do menor, que possui descendência em linha reta para com a primeira (avó paterna x neto) e vínculo de parentesco por afinidade para com o parceiro da avó.
É importante frisar que o vínculo afetivo e de afinidade restou incontroversamente demonstrado nos presentes autos e perduram desde os 10 (dez) dias de vida do menor até então.
Relativamente ao avô por afinidade (parente próximo), não fosse o liame de convivência estabelecido com a avó paterna, seria considerado um terceiro absolutamente estranho à relação de parentalidade, o que, nos termos da legislação, autorizaria a adoção unilateral estabelecida no art. 50, § 13, inciso I do ECA, bem ainda aquela exercida por quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 anos ou adolescente, haja vista que no caso, a guarda legal foi deferida aos requerentes desde 19⁄07⁄2012.
De sua vez, no tocante à avó paterna, essa é parente próxima consanguínea em linha reta, que detém a guarda fática do menor desde que esse tinha 10 (dez) dias de vida e a guarda legal, devidamente deferida por autoridade judicial, desde os quatro meses de vida. É inegavelmente família extensa ou ampliada da criança (parente) com incontroversa afetividade e afinidade para com o infante e vice-versa. O menor a reconhece não como avó mas como mãe e não tem vínculo afetivo para com os genitores, tanto que os reconhece como se irmãos distantes fossem.
A situação de fato já está – há muito – estabelecida, pois os requerentes exercem de fato, a função de pais desde o início, pelo que o vínculo de afinidade guarda essa característica muito embora sejam “avós”. Tal como referido pelo Tribunal a quo , “a condição retratada nos autos deixa transparecer a perfeita adaptação do menor à relação de filiação de fato com seus avós. Inserido em família que lhe proporciona condições afetivas, morais e materiais para pleno desenvolvimento e não contando com qualquer amparo de seus pais biológicos, tudo recomenda a legalização” .
A interpretação da legislação de regência não é de ser realizada apenas de maneira literal (gramatical). Os métodos lógico e sistemáticos devem ser utilizados para coordenar a interpretação da lei com todo o ordenamento jurídico, ou seja, a interpretação do texto legal deve ser condicionada pela sua aplicação razoável, de maneira a que ocorra uma superação da vontade do legislador por aquela que se poderia denominar pretensão axiológica do sistema, o que somente se reconhece após a interação dialética entre o ordenamento e o intérprete na análise concreta da aplicação normativa.
A inauguração desse novo posicionamento que afasta o conflito aparente de normas realizado mediante uma análise gramatical, lógica, sistemática e axiológica do quanto estabelecido na norma não constitui ativismo judicial, mas um dever imposto ao julgador intérprete de salvaguardar o melhor interesse da criança e conferir uma ponderação equilibrada e concatenada da vontade social exercida pela atuação do legislador.
Assim, na hipótese ora em foco, é de ser negado provimento ao recurso especial, notadamente quando incontroverso dos autos que: a) a criança conta atualmente com aproximadamente 8 (oito) anos de idade; b) a pretensão é deduzida por sua avó paterna e seu avô por afinidade (parentes próximos) nos termos da lei que tem a guarda fática e legal do menor desde sua tenra idade; c) os genitores não possuem qualquer vínculo sócio-afetivo para com o menor, tendo, inclusive, expressamente concordado com a adoção; d) o infante reconhece os autores como seus genitores e seu pai (filho da avó adotante) como irmão, estando perfeitamente adaptado à relação de filiação de fato com seus avós; e) inexiste conflito familiar a respeito da adoção; f) a legislação admite a adoção por parentes, sem fazer qualquer limitação acerca da consanguinidade ou afinidade e não determina o rompimento dos vínculos do adotante (parente) para com sua família dado o contrassenso da proposição; e, g) a legislação especial do ECA determina a interpretação da lei no melhor interesse da criança e salvaguarda a que esta permaneça e se desenvolva no seio familiar que abrange a família ampliada⁄extensa.
4. Do exposto, com acréscimo de fundamentação, acompanho o e. relator para negar provimento ao recurso especial.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
QUARTA TURMA
Número Registro: 2016⁄0051218-8
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.587.477 ⁄ SC
Números Origem: 00063295120128240135 00288985820158240000 135120063291 20140940219 20140940219000100 20140940219000200

PAUTA: 06⁄02⁄2020 JULGADO: 10⁄03⁄2020
SEGREDO DE JUSTIÇA
Relator
Exmo. Sr. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro MARCO BUZZI
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. HINDEMBURGO CHATEAUBRIAND PEREIRA DINIZ FILHO
Secretária
Dra. TERESA HELENA DA ROCHA BASEVI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA
RECORRIDO : C N DA S
RECORRIDO : N A DE S
ADVOGADOS : BEATRIZ FERREIRA RAMSDORF SOUZA E OUTRO (S) – SC031606
NILTON SOUZA – SC035640
PAULO CAIO DE SOUZA PATRICIO – SC039598
INTERES. : S N DA S (MENOR)
INTERES. : A J
INTERES. : A DE S
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Família – Relações de Parentesco
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia QUARTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
Após o voto-vista do Ministro Marco Buzzi acompanhando o relator, a Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do relator e com acréscimo de fundamentação do Ministro Marco Buzzi (Presidente).
Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi (Presidente) (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator.

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