TJMG: União estável
(…) Sobre este tema, assim disserta Rodrigo da Cunha Pereira, renomado autor no âmbito de direito de família, in verbis:
O delineamento do conceito de união estável deve ser feito buscando os elementos caracterizadores de um “núcleo familiar”. É preciso saber se daquela relação nasceu uma entidade familiar. Os ingredientes são aqueles já demarcados principalmente pela jurisprudência e doutrina pós-constituição de 1988: durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de dependência econômica. Entretanto, se faltar um desses elementos, não significa que esteja descaracterizada a união estável. É o conjunto de determinados elementos que ajuda a objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se.
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. IBDFAM. 2010) (grifou-se)
Decisão
Processo nº 16.2343-6
Ação Declaratória de União Estável Post Mortem
Autor: R. S.
Réus: J. A. P., L. F.O. e L. C. F. P.
SENTENÇA
I – RELATÓRIO
R. S. ajuizou AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM em face de J. A. P., L. F. O. e L. C. F. P., todos qualificados, alegando que viveu em união estável com M. F. P., genitora do primeiro réu e avó das demais requeridas, desde 1983, convivendo como se casados fossem, de maneira pública e notória, com intuito familiae, até sua morte em 27/02/2011.
Narrou que o casal viveu no Rio de Janeiro/RJ por doze anos, vindo a se mudar para Paula Cândido/MG em 1995, em virtude do quadro de saúde delicado dos pais de M., que ali residiam.
Afirmou que, durante a união de fato, foi adquirido um lote na cidade de Viçosa/MG, no qual foram construídas duas casas, sem o devido registro.
Nestes termos, requereu a declaração de existência da união estável pelo interregno de 1983 a 2011.
Protestou por provas, requereu os benefícios da justiça gratuita e atribuiu à causa o valor de R$ 880,00 (oitocentos e oitenta reais).
A inicial foi instruída com os documentos de f. 07/12.
Instado a comprovar a alegação de pobreza, o requerente apresentou os documentos de f. 16/19.
Concedidas as benesses da justiça gratuita ao autor em f. 20.
Os réus apresentaram contestação às f. 34/41, na qual aduziram que não existem nos autos quaisquer provas materiais que comprovem a configuração de união estável supostamente vivida pelo autor e M., sendo que o casal manteve um relacionamento por aproximadamente oito anos, de 1997 a 2005, sem, contudo, estarem presentes a convivência more uxória e o affectio maritalis.
Verberaram que o ex-marido de M. veio a óbito em meados de 1995, de modo que o alegado envolvimento entre ela e o autor nesta data caracterizaria concubinato.
Seguiram narrando que o lote mencionado na peça vestibular foi doado ao pai de M., que o doou ao então marido de M., que, por sua vez, o repassou a ela; apenas em 2009, afirmaram, ocorreu a regularização do lote. Já a residência da falecida foi construída por ela com o dinheiro da pensão de seu finado marido, sem auxílio do autor.
Suscitaram que, durante os oito anos de relacionamento, o requerente, que é alcoólatra, sempre foi agressivo com M., levando-a a romper a convivência em meados de 2005.
Desta maneira, pugnaram pela improcedência da pretensão autoral, e, subsidiariamente, vindo a ser reconhecida eventual união estável entre o demandante e M., por sua restrição ao período de 1997 a 2005, e pelo reconhecimento da separação de corpos do casal em 2005.
Protestaram por provas, requereram a assistência judiciária gratuita e instruíram a peça de defesa com os documentos de f. 42/73.
O autor impugnou a contestação às f. 74/75, rebatendo os argumentos apresentados pelos réus.
Suscitada a intempestividade da impugnação às f. 78/79.
Em decisão em saneamento e organização do processo, foram deferidos os benefícios da justiça gratuita aos réus, definidos os pontos controvertidos e distribuídos o ônus da prova (f. 98/98v).
Juntada de documentos pelo autor às f. 119/143.
Realizada audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas 4 (quatro) testemunhas e tomado depoimento pessoal do requerente (f.145/147).
Alegações finais do demandante às f. 149/152.
Após, vieram-me os autos conclusos para julgamento.
É o relatório, no necessário. Decido.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Cuida-se de AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM em que a parte autora requer o reconhecimento da união estável que viveu com a falecida M. F.P. de 1995 a 2011.
A parte ré, por sua vez, afirma que a convivência entre o casal deu-se tão somente de 1997 a 2005, sem, contudo, verificar-se a existência de more uxória e affectio maritalis.
Este é, em linhas gerais, o cerne da controvérsia.
O processo tramitou regularmente, não havendo nulidades que possam maculá-lo, nem vícios a serem suscitados de ofício, razão pela qual se passa a enveredar pelo mérito da causa.
Inicialmente, há de se destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, reconhece a união estável como entidade familiar e a ela dispensa proteção:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
[…]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Para a configuração da união estável, o artigo 1.723 do Código Civil estabelece três requisitos, quais sejam: a convivência pública, de forma contínua e duradoura, e com o objetivo de constituir família. Confira-se:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Sobre este tema, assim disserta Rodrigo da Cunha Pereira, renomado autor no âmbito de direito de família, in verbis:
O delineamento do conceito de união estável deve ser feito buscando os elementos caracterizadores de um “núcleo familiar”. É preciso saber se daquela relação nasceu uma entidade familiar. Os ingredientes são aqueles já demarcados principalmente pela jurisprudência e doutrina pós-constituição de 1988: durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de dependência econômica. Entretanto, se faltar um desses elementos, não significa que esteja descaracterizada a união estável. É o conjunto de determinados elementos que ajuda a objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se.
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. IBDFAM. 2010) (grifou-se)
Conclui-se, portanto, que a convivência pública e notória e a continuidade da relação amorosa, por si só, são insuficientes para a configuração de uma união estável; outrossim, é necessário que deste relacionamento surja um núcleo familiar, cujo fundamento é o afeto e a cooperação existente entre os membros desta família. Com efeito, os requisitos para configuração da união estável são cumulativos e indissociáveis.
Neste sentido, insta frisar que a prova para o reconhecimento da união estável deverá ser certa, segura e incontroversa, de maneira que não restem dúvidas se, na hipótese, configurou-se uma entidade familiar ou um mero namoro.
Do caderno probatório do feito, destacam-se o boletim de ocorrência de f. 57/61 e os seguintes trechos da prova oral produzida:
Depoimento pessoal do autor
Não morava com M. no mês anterior à sua morte. Afirma que ela nunca chamou a polícia nos últimos anos de relacionamento, e que nunca a agrediu. Construiu a casa em que eles moraram juntos nestes últimos anos, no lote que M. havia adquirido quando era solteira. Aduziu que eles viviam bem juntos.
Maria Aparecida de Fátima Cardoso Camilo
Vizinha do autor há mais de 20 anos. Afirma que R. sempre morou com M., como marido e mulher, e viviam bem juntos. Em seu último mês de vida, M. foi levada para o hospital, e não sabe se houve seu consentimento, porque ela não gostava de ficar afastada de Roberto. O autor construiu a casa em que vivia, antes havia ali um cafezal. Narrou que, em conversa com M. antes dela ir para a casa de sua irmã, M. pediu para que ela [testemunha] cuidasse de Roberto, caso ela falecesse primeiro. A convivência do requerente com os parentes de M. era muito boa, o que mudou depois de sua morte. Nunca testemunhou nenhuma discussão entre o casal, tampouco qualquer violência por parte de Roberto ou envolvimento da polícia.
Edmilson Cesar da Silva
Conheceu Roberto quando entregou material de construção na casa dele. Nessas entregas, às vezes era recebido pela esposa de Roberto, cujo nome não soube dizer, mas afirmou nunca ter visto o autor com outra mulher. Não ouviu falar de nenhuma agressão perpetrada por Roberto.
Carlos Eduardo Costa da Silva
Morava na mesma rua que dona M. que àquela época residia sozinha. Já atuou em ocorrência policial envolvendo o casal, à pedido de dona M., que estava acompanhada de outra senhora. O depoente e outros policiais acompanharam M. até a casa de R., para que ela pudesse retirar bens pessoais do local. Roberto estava embriagado e exaltado na ocasião. Na ocasião, o autor foi preso por ameaçar M..
Maria do Carmo de Oliveira Pinto
Conheceu dona M. quando trabalhava como agente de saúde, função que exerceu de 2009 a 2012. Durante as visitas domiciliares que fazia, aproximadamente uma vez por mês, nunca viu Roberto.
Pois bem.
Dos autos, colhem-se indícios do teor da relação amorosa entre o demandante e M. condizentes com aquele apresentado pelo autor, como a declaração prestada pela ré Luciana em 2011 em lavramento de Boletim de Ocorrência (f. 57/61), mencionando que M. vivia maritalmente com o autor por cerca de trinta anos à época, e o depoimento prestado pela testemunha Maria Aparecida de Fátima Cardoso Camilo, vizinha do casal, que afirmou que R. e M. viveram como marido e mulher em Paula Cândido por mais de 20 anos (f. 147, mídia), sem ter jamais tomado ciência de qualquer episódio de violência por parte de Roberto.
Nada obstante, os demais testemunhos tomados em audiência não corroboram com a narrativa: Carlos Eduardo Costa da Silva (f. 147, mídia), policial militar, afirmou que foi vizinho de M. desde o final de 2010 até seu falecimento, e que ela, já idosa à época, morava sozinha; contou que também estava presente quando M., acompanhada de outra mulher, foi à delegacia pedir acompanhamento até a casa do demandante, que possuía comportamento agressivo para com ela, a fim de buscar seus objetos pessoais. Seguiu relatando que, na ocasião, o autor estava alterado, e, após proferir ameaças, foi detido pela polícia. A descrição encontra amparo no boletim de ocorrência de f. 57/61.
Maria do Carmo de Oliveira Pinto (f. 147, mídia), agente de saúde, declarou ter atendido M. em sua residência entre 2009 e seu falecimento, em endereço diferente daquele apontado pelo autor como seu domicílio, e que, durante suas visitas, que ocorriam uma vez ao mês, nunca viu o requerente na casa.
Por fim, Edmilson César da Silva (f. 147, mídia), testemunha arrolada pelo autor, narrou que, há alguns anos, entregou materiais de construção ao autor em sua residência, e que às vezes era recebido por sua esposa, cujo nome, contudo, não soube dizer.
Ademais, inexiste suporte fático acerca do relacionamento do casal de 1983 a 1995, período no qual supostamente viveram no Rio de Janeiro.
Assim, diante das inconsistências apontadas pelas provas do feito, resta claro que o autor não se desincumbiu de seu ônus probatório, atribuído às f. 98/98v, sendo, inclusive, com a devida vênia, curioso e incoerente que o autor, nada obstante a alegação de ter vivido com M. como se casados fossem por quase 30 anos, de modo público e notório, tenha arrolado uma testemunha que não possui qualquer relação com o casal para além de entregar produtos em sua residência, e que sequer conhece o nome de sua companheira.
Não sendo possível aferir a ocorrência concomitante e firme dos requisitos de configuração da união estável, não há que se cogitar seu reconhecimento, consoante entende a jurisprudência:
APELAÇÃO. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL “POST MORTEM”. REQUISITOS LEGAIS. ARTIGO 1.723 DO CÓDIGO CIVIL. NÃO COMPROVAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA.
– Não se reconhece a união estável quando ausente a comprovação dos requisitos da união pública, contínua e duradoura, fidelidade, estabilidade, mútua assistência e ânimo de constituir família.
– A precariedade e inconsistência das provas produzidas nos autos autorizam concluir que a relação das partes não chegou à posição de entidade familiar e, assim, não restaram preenchidos os requisitos do artigo 1.723 do Código Civil. (TJMG – Apelação Cível 1.0000.19.157120-7/001, Relator(a): Des.(a) Moacyr Lobato, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/04/2020, publicação da súmula em 27/04/2020)
Diante do exposto, a improcedência da pretensão autoral é medida que se impõe.
III – DISPOSITIVO
Posto isso, JULGO IMPROCEDENTE o pedido autoral, resolvendo o mérito na forma do art. 487, I, do Código de Processo Civil.
Condeno o autor ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, cuja verba estimo em R$ 800,00 (oitocentos reais), levando em conta o bom trabalho desenvolvido pelo patrono dos réus, a complexidade do feito e o baixo valor da causa, nos termos do art. 85, §§ 2º e 8º do CPC.
Verbas sucumbenciais com exigibilidade suspensa para o autor, por força do art. 98, §3º, do CPC.
Transitada em julgado, arquivem-se com baixa, após as devidas providências.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Viçosa, 18 de maio de 2020.
GIOVANNA TRAVENZOLLI ABREU LOURENÇO
Juíza de Direito