Dois cafés e a conta com Rodrigo da Cunha Pereira
Fonte: Revista O Globo
O presidente do Ibdfam, o instituto que está ajudando a modernizar o direito de família no Brasil, fala das transformações na vida privada
Desde cedo o advogado Rodrigo da Cunha Pereira revoltava-se com a moral vigente em Abaeté, no interior de Minas, onde nasceu há 55 anos. “Por que o homem podia transar antes do casamento e a namorada não?” Em 1997, ele fundou, com outros especialistas, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), que promove, de 20 a 22, em Araxá (MG), o IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, com o tema “Famílias: pluralidade e felicidade”. O instituto tem proposto leis inovadoras e humanizado o direito de família, que tem um histórico de exclusões. “Até 1988 os filhos tidos fora do casamento não podiam ser registrados. E até pouco tempo a mulher que traísse o marido era considerada culpada pelo fim do casamento e perdia a guarda do filho”, exemplifica. Ele adora criar teses jurídicas para resolver casos que não estão previstos na lei. Foi assim em 1984, quando fez a primeira ação judicial da causa do movimento feminista do país. Uma mulher o procurara: “Só porque tive filho e sou solteira não posso ir ao clube social em Conselheiro Lafaiete. E o pai pode.” Ele inventou a ação, ganhou e ela entrou para o clube, de cabeça erguida.
Que inovações o instituto tem trazido?
Família homoafetiva é uma expressão inventada por nós. A sustentação jurídica do STF para reconhecer essas relações foi com base no que escrevemos. Outra expressão nossa é paternidade socioafetiva. Digamos que casei com uma mulher que trouxe o filho para o casamento. Com o tempo, me torno pai também. Os laços de sangue não são suficientes para garantir a paternidade e a maternidade, os laços de afeto devem ser considerados tão importantes quanto os biológicos. Criamos ainda a tese da fraternidade socioafetiva. Três irmãs viviam com um homem rico, como irmãos. Ele não tinha filhos e morreu sem fazer testamento. Pela lei, tudo iria para sobrinhos que moravam na Itália e com quem ele não tinha nenhum contato. Fizemos um acordo e elas receberam metade da herança.
O que mais?
Outra expressão que inventamos é alimentos compensatórios, ou pensão compensatória. Num caso que tenho, uma mulher ficou casada 30 anos com o marido e eles se separaram. Ela trabalha, ganha R$ 5 mil por mês. Ele ganha uma fortuna, R$ 300 mil por mês. A rigor, ela trabalha e não teria direito a pensão. Mas é justo que ele pague, porque ela investiu muito mais na formação dos filhos. A pensão é uma forma de compensar o desnível do padrão socioeconômico, de valorizar o trabalho doméstico, de atribuir um conteúdo econômico a ele, que nunca foi valorizado. É um trabalho invisível. Inventei ainda a tese do abandono afetivo. Um rapaz de 18 anos me procurou. Disse que o pai pagava pensão, mas nunca o visitava. O havia abandonado. Entrei no judiciário pedindo indenização por abandono afetivo. Ganhei na segunda instância, mas perdi no STJ. Só que abriu uma discussão e surgiram várias ações. O STJ agora julgou uma delas e disse que o pai que abandona tem que indenizar. Claro que não tem jeito de você obrigar a dar afeto e atenção, a cuidar, a colocar limite, mas se abandonou você tem que ser responsabilizado por isso.
Vocês têm estado à frente de muitas mudanças…
Propusemos uma emenda constitucional para simplificar o divórcio. Foi aprovada em 2010. Em 1977, passou o divórcio, mas ainda era preciso cumprir um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato. Somente após um ano separado judicialmente você podia converter a separação em divórcio. Você tinha que ficar num limbo, num purgatório. Todo mundo achava isso normal. Conseguimos acabar com isso. E também com outra coisa ridícula. Na separação judicial, a lei previa que você discutisse a culpa. Procurava-se um culpado pelo fim do casamento. O Estado queria saber por que você se separou. Ora, não tem um culpado, as pessoas não sabem por que o casamento acabou. Mas é mais fácil atribuir a culpa ao outro, tira a responsabilidade de si. E o processo é um jeito de perpetuar a relação por meio da briga. Mas é perverso. As duas partes ficam unidas pelo ódio. Há 30 anos que advogo e já tive vários casos de clientes que morreram, de câncer ou enfarte, durante o processo. A briga adoece a pessoa, e o Estado estimula isso na medida em que diz “sim, tem um culpado”. Com discussão de culpa o processo judicial vira uma história de degradação do outro. E o filho no meio desse fogo cruzado vira moeda de troca. E muitos advogados estimulam o litígio. Mas separação é momento de muita dor, não tem ganhadores. Nós, advogados, lidamos com os restos do amor que vão parar na Justiça. Com nossa emenda substituiu-se o discurso da culpa pelo da responsabilidade, e se reduziram os conflitos e os litígios.
O que mais isso representa?
Quando propusemos a emenda, enfrentamos oposição da Igreja. O discurso era o mesmo de 1977. Diziam que estávamos acabando com a família. Ouvia-se: “Ah, eu estou me divorciando, a minha família está acabando.” Não, o que está acabando é o casamento. A família sai mais fortalecida, porque deu mais responsabilidade nas escolhas amorosas. E representou um passo a mais na separação entre Igreja e Estado. Nossa tendência é tornar o Estado mais laico, para as pessoas terem mais liberdade. Nossa luta é para que o Estado se afaste cada vez mais das questões privadas, é que interfira cada vez menos.
São muitas as mudanças nas famílias, não?
Como ela deixou de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do companheirismo, surgiram várias formas de família, como anaparental, monoparental, homoafetiva, socioafetiva, nuclear, binuclear, simultânea ou paralela, recomposta ou reconstituída ou redimensionada, democrática ou eudemonista, informal, natural, ectogenética, matrimonial, parental, conjugal, mosaico, extensa, substituta, pluriparental. Paralela ou simultânea é quando alguém tem duas famílias ao mesmo tempo. Ectogenética é família constituída com filhos de inseminação artificial. Mosaico fui eu que usei essa expressão pela primeira vez para denominar os casos em que você trouxe filho de casamento anterior, sua mulher também e vocês tiveram filhos juntos.
Fale mais de algumas novas formações familiares.
Há pessoas que querem ter filho, mas sem constituir vínculo amoroso, e recorrem a sites, onde você conhece alguém, vê o perfil e decide se ela pode ser boa mãe ou bom pai. Fiz um contrato de geração de filho e de guarda compartilhada no interior de Minas. Ele, sem filho, de 35 anos, ela, sua secretária, casada, com filho, de 50. O marido autorizou a inseminação artificial e o garoto hoje tem 8 anos. É a chamada parceria de paternidade.
Isso é uma novidade em relação à barriga de aluguel…
Nos anos 1960, havia a produção independente. Depois, veio o banco de sêmen. Em seguida, a barriga de aluguel, a terceirização da gravidez. O termo legal é útero de substituição. No Brasil, é proibido pagar, mas em vários países é permitido. Não vejo problema nisso. Por que a mulher, que passará por todos os riscos e dificuldades de uma gravidez, não pode receber por este serviço? O que se está alugando é o útero, não a criança. Se os homens é que ficassem grávidos o mercado já estaria regulamentado. A regulamentação evitaria extorsões, em que se fica nas mãos de traficantes, a clandestinidade e uma indústria de barriga de aluguel. Tem sites que oferecem esse tipo de serviço e mulheres que cobram cerca de R$ 100 mil pela comercialização do útero.
Você tem recebido outros casos pouco usuais?
Duas mulheres de Brasília me procuraram. Viviam juntas, desejavam ter filho, mas sem ir ao banco de sêmen, porque queriam que o filho conhecesse o pai. Um casal de homens, amigos delas, também queria filho. Um deles doou o sêmen, uma delas, o óvulo, e a criança foi gerada por inseminação. Fiz o contrato de regulamentação da guarda. O menino tem dois pais, duas mães, oito avós, 16 bisavós. Será que isso é ruim para a criança? Não sei, ela vai ser feliz na medida do amor que receber. Isso é o que interessa.
Sua opção pelo direito de família tem a ver com sua história?
Sempre me indignei com as injustiças nas famílias, inclusive na minha. Meu avô materno tinha duas mulheres, e teve filhos com a esposa e a companheira. As duas filhas “legítimas” foram retiradas dali para não conviverem com as filhas “ilegítimas” e mandadas para a capital, Belo Horizonte. Já um dos filhos de meu avô materno teve filho com a empregada. Esse meu tio foi mandado para o Rio, e a empregada teve que casar com outro empregado. Tudo para preservar a moral e os bons costumes. Para a família, tudo bem fazer de conta que aquilo não existe. Mas e aqueles parentes marginalizados, condenados à invisibilidade?
Existem hoje dezenas de configurações familiares…
A família se reinventa. Antes só havia a formação clássica (pai, mãe, filhos). Mudou tanto que, ano passado, um de meus filhos, com 12, falou: “Pai, vocês não vão se separar? Queria ter duas casas, na minha sala quase todo mundo tem.” (Risos.) Antes, filho de pais separados era discriminado, hoje ficou comum. O que interessa é a felicidade, seja a composição que a família tiver.
http://oglobo.globo.com/rio/dois-cafes-a-conta-com-rodrigo-da-cunha-pereira-10706583