STJ: Multiparentalidade
(…) O reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI n. 4.277/DF). 3. Da interpretação não reducionista do conceito de família surge o debate relacionada à multiparentalidade, rompendo com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente. 4. Apreciando o tema e reconhecendo a repercussão geral, o Plenário do STF, no julgamento do RE n. 898.060/SC, Relator Ministro Luiz Fux, publicado no DJe de 24/8/2017, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.”
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. FILHO HAVIDO DE RELAÇÃO EXTRACONJUGAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE QUANDO ATENDER AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. APLICAÇÃO DA RATIO ESSENDI DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JULGADO COM REPERCUSSÃO GERAL. SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE DA GENITORA SOBRE O DA MENOR. RECURSO DESPROVIDO. 1. O propósito recursal diz respeito à possibilidade de concomitância das paternidades socioafetiva e biológica (multiparentalidade). 2. O reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI n. 4.277/DF). 3. Da interpretação não reducionista do conceito de família surge o debate relacionada à multiparentalidade, rompendo com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente. 4. Apreciando o tema e reconhecendo a repercussão geral, o Plenário do STF, no julgamento do RE n. 898.060/SC, Relator Ministro Luiz Fux, publicado no DJe de 24/8/2017, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.” 5. O reconhecimento de vínculos concomitante de parentalidade é uma casuística, e não uma regra, pois, como bem salientado pelo STF naquele julgado, deve-se observar o princípio da paternidade responsável e primar pela busca do melhor interesse da criança, principalmente em um processo em que se discute, de um lado, o direito ao estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito à manutenção dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho. 6. As instâncias ordinárias afastaram a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade na hipótese em questão, pois, de acordo com as provas carreadas aos autos, notadamente o estudo social, o pai biológico não demonstra nenhum interesse em formar vínculo afetivo com a menor e, em contrapartida, o pai socioafetivo assiste (e pretende continuar assistindo) à filha afetiva e materialmente. Ficou comprovado, ainda, que a ação foi ajuizada exclusivamente no interesse da genitora, que se vale da criança para conseguir atingir suas pretensões. 7. Ressalva-se, contudo, o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, da menor pleitear a inclusão do nome do pai biológico em seu registro civil ao atingir a maioridade, momento em que poderá avaliar, de forma independente e autônoma, a conveniência do ato. 8. Recurso especial desprovido.
(STJ – REsp: 1674849 RS 2016/0221386-0, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 17/04/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/04/2018)
ECURSO ESPECIAL Nº 1.674.849 – RS (2016⁄0221386-0)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : A C V D (MENOR)
REPR. POR : A P F V
ADVOGADO : PIETRO TOALDO DAL FORNO E OUTRO (S) – RS075757
RECORRIDO : E A C D
ADVOGADO : MAURICIO PAZ JUSTEN E OUTRO (S) – RS066904
RECORRIDO : A V H
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS – SE000000M
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C⁄C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. FILHO HAVIDO DE RELAÇÃO EXTRACONJUGAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE QUANDO ATENDER AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. APLICAÇÃO DA RATIO ESSENDI DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL JULGADO COM REPERCUSSÃO GERAL. SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE DA GENITORA SOBRE O DA MENOR. RECURSO DESPROVIDO.
1. O propósito recursal diz respeito à possibilidade de concomitância das paternidades socioafetiva e biológica (multiparentalidade).
2. O reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI n. 4.277⁄DF).
3. Da interpretação não reducionista do conceito de família surge o debate relacionada à multiparentalidade, rompendo com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente.
4. Apreciando o tema e reconhecendo a repercussão geral, o Plenário do STF, no julgamento do RE n. 898.060⁄SC, Relator Ministro Luiz Fux, publicado no DJe de 24⁄8⁄2017, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.”
5. O reconhecimento de vínculos concomitante de parentalidade é uma casuística, e não uma regra, pois, como bem salientado pelo STF naquele julgado, deve-se observar o princípio da paternidade responsável e primar pela busca do melhor interesse da criança, principalmente em um processo em que se discute, de um lado, o direito ao estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito à manutenção dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho.
6. As instâncias ordinárias afastaram a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade na hipótese em questão, pois, de acordo com as provas carreadas aos autos, notadamente o estudo social, o pai biológico não demonstra nenhum interesse em formar vínculo afetivo com a menor e, em contrapartida, o pai socioafetivo assiste (e pretende continuar assistindo) à filha afetiva e materialmente. Ficou comprovado, ainda, que a ação foi ajuizada exclusivamente no interesse da genitora, que se vale da criança para conseguir atingir suas pretensões.
7. Ressalva-se, contudo, o direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, da menor pleitear a inclusão do nome do pai biológico em seu registro civil ao atingir a maioridade, momento em que poderá avaliar, de forma independente e autônoma, a conveniência do ato.8. Recurso especial desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Brasília, 17 de abril de 2018 (data do julgamento).
MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.674.849 – RS (2016⁄0221386-0)
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:
Cuida-se de recurso especial interposto por A C V D, fundado no art. 105, III, a e c, da Constituição da República, em contrariedade ao acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. FILIAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA. ART. 1.614 DO CCB. REPRESENTAÇÃO DE TITULAR DE DIREITO PERSONALÍSSIMO. POSSIBILIDADE. PATERNIDADE SOCIAFETIVA. PREVALÊNCIA, NO CASO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA.
1. A genitora de filha menor detém legitimidade para representá-la em ação que, com fundamento no art. 1.614 do CCB, visa a desconstituir paternidade assentada no registro civil e afirmar outra, com esteio em vínculo biológico.
2. No caso, contudo, comprovado que a criança é assistida material e afetivamente pelo pai registral e tendo sido apurado que essa paternidade socioafetiva melhor atende aos seus interesses, deve ser mantida a sentença de improcedência do pedido.
3. Paternidade biológica que, assim, não pode prevalecer, mesmo porque o genitor não demonstra interesse em cuidar e responsabilizar-se pela menor.
POR MAIORIA, REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM PROVIMENTO A APELAÇÃO.
Subjaz ao presente recurso especial ação de investigação de paternidade com pedido de retificação de registro civil ajuizada por A C V D, representada por sua genitora, em desfavor de A V H e de E A C D.
Depreende-se dos autos que a requerente nasceu em 10⁄5⁄2012, porém foi concebida em um período no qual sua genitora manteve relacionamento amoroso com ambos os requeridos. Contudo, tendo em vista que a progenitora da autora possui outros 2 (dois) filhos com o réu E A C D, este procedeu ao registro da menor, como se pai desta fosse, sem ter a certeza, contudo, da verdade biológica.
O Magistrado de primeiro grau julgou improcedente o pedido. Interposta apelação pela autora, a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por maioria, negou provimento à insurgência.
Irresignada, a menor interpõe recurso especial fundamentado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, apontando, além de dissídio jurisprudencial, violação ao art. 27 do ECA.
Sustenta, em síntese, a necessidade de se reconhecer a multiparentalidade, ao argumento de que a perfilhação biológica será favorável ao melhor convívio futuro entre as partes, sem que haja a perda do vínculo socioafetivo já constituído.
Sem contrarrazões.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.674.849 – RS (2016⁄0221386-0)
VOTO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):
Debate-se no presente recurso especial sobre a possibilidade de as paternidades socioafetiva e biológica constarem concomitantemente no registro civil (multiparentalidade).
A primeira observação que se afigura relevante, ainda que elementar, é a revolução provocada pelo advento da Constituição da República de 1988 quanto ao tratamento jurídico das relações familiares, trazendo o eixo axiológico-normativo do Direito Civil para o campo do Direito Constitucional.
Assim, a irradiação imediata das normas constitucionais de proteção da pessoa se torna imperiosa, notadamente do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, o qual comprova a forte “despatrimonialização” do Direito Privado.
Ainda sob a vigência do Código Civil de 1916, a família tradicional estava centrada na propriedade e no matrimônio, tornando-a uma unidade produtiva e reprodutora, isto é, a família era um fim em si mesma, desconsiderando-se a importância dos laços de afetividade.
Contudo, a evolução da sociedade ensejou a modificação da forma de organização da família, expandindo-se àquelas desvinculadas do casamento e unidas pela afetividade, sendo esta o principal fundamento das relações familiares da atualidade, que, inclusive, é consequência da constante valorização da dignidade da pessoa humana.
Passa-se, portanto, a entender a família como um meio para se alcançar a felicidade, despontando o conceito de família eudemonista, isto é, a família é um instrumento para a busca da felicidade, exercendo um papel fundamental para se buscar o bem-estar e a plenitude do ser humano.
Portanto, o direito à busca da felicidade eleva o indivíduo à centralidade do ordenamento jurídico, respeitando sua autodeterminação e sua liberdade de escolha, assim como veda ao Estado se imiscuir nos meios escolhidos pelo indivíduo para concretizar sua vontade, já que o direito deve se curvar às necessidades do sujeito, e não o contrário.
Ademais, tendo em vista que a concepção jurídica de família vem sofrendo constantes mutações, consequentemente há uma alteração na ordem jurídica de filiação. Dessa forma, tem-se entendido que, em regra, a paternidade socioafetiva deve prevalecer na solução de conflitos com a verdade biológica, salvo hipóteses em que o caso concreto demanda a ponderação do preceito.
A propósito:
DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE E MATERNIDADE AJUIZADA PELA FILHA. OCORRÊNCIA DA CHAMADA “ADOÇÃO À BRASILEIRA”. ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS CIVIS DECORRENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA. PATERNIDADE E MATERNIDADE RECONHECIDOS.
1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada “adoção à brasileira” .
2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho – o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo – quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de “erro ou falsidade” (art. 1.604 do CC⁄02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de “adoção à brasileira” , significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei.
3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada “adoção à brasileira”, independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada “adoção à brasileira”.
4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que figurem os réus como pais da requerente. (REsp 1167993⁄RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18⁄12⁄2012, DJe 15⁄03⁄2013)
Diante dessas premissas, constata-se que a superação de conceitos rígidos de família, estabelecidos pela lei, é medida que se impõe, incluindo seus reflexos na filiação, homenageando-se os modelos construídos pelos próprios indivíduos em suas relações afetivas, tais como as famílias monoparentais, anaparentais e reconstituídas, estas também conhecidas como famílias mosaico.
Há de se ver que o reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico, como consignou o STF no julgamento da ADI n. 4.277⁄DF, em que se atribuiu a qualidade de entidade familiar às uniões homoafetivas.
Assim, é exatamente em razão da interpretação não reducionista do conceito de família que surge o debate relacionado à multiparentalidade, a qual, segundo Paulo Lôbo, rompe com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente (LÔBO, Paulo. Parentalidade socioafetiva e multiparentalidade: questões atuais. In SALOMÃO, Luis Felipe; TARTUCE, Flávio. (Org.). Direito civil: diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2018. p. 602).
Portanto, a multiparentalidade passa a ser uma realidade jurídica, tanto é que foi editado o Enunciado n. 9 do IBDFAM, dispondo que “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”.
A questão inclusive foi objeto de recente apreciação pelo Plenário do STF, no julgamento do RE n. 898.060⁄SP, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, no qual foi reconhecida a repercussão geral e se fixou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.”
Frisou-se, também, a necessidade de estrita observância ao melhor interesse do menor (art. 227 da CRFB), além de ser impositivo o respeito ao princípio da paternidade responsável, mediante a vedação de designações discriminatórias quanto à filiação, sejam os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, sendo garantidos os mesmos direitos e qualificações.
Consabido, cuida-se de questão delicada e que demanda uma atenção especial do julgador, pois envolve direitos e interesses sensíveis, sendo que as controvérsias daí decorrentes podem gerar sequelas profundas ou danos emocionais irreparáveis, o que recomenda, em certos casos, que o julgamento da causa seja realizado ponderando as peculiaridades fáticas que lhe são próprias. Daí por que as controvérsiais devem ser apreciadas sopesando-se não só o direito positivo, mas também os princípios constitucionais irradiantes.
Feitas essas considerações, importante asseverar que, no caso concreto, as instâncias ordinárias julgaram improcedente o pleito inicial, não obstante o exame de DNA realizado nos autos tenha confirmado o vínculo biológico entre a demandante e A V H.
De acordo com o quadro fático delineado pelo acórdão recorrido, os argumentos para a improcedência da demanda têm como suporte principal o estudo social produzido durante a instrução probatória.
Segundo os elementos colhidos, o pai socioafetivo, mesmo não tendo certeza quanto à paternidade, registrou a criança como sendo sua filha, passando, a partir então, a tratá-la como tal, afirmando que “pai é quem cria” (sic) e que não se importaria em continuar se responsabilizando pela criação da menor.
Em contraponto, o pai biológico, além de não demonstrar afeição pela menor, expressamente afirmou à assistente social que seria indiferente à alteração do registro da criança, noticiando, ainda, que jamais se envolveu na criação ou educação dos seus outros 6 (seis) filhos havidos com sua esposa, levando a crer que o mesmo ocorrerá com a autora.
Assinala-se que, ao tempo do ajuizamento da ação, a mãe e o pai socioafetivo da menor moravam juntos, na companhia dos outros 2 (dois) filhos, a despeito de não conviverem mais em união estável. Ademais, a genitora e o pai biológico ainda mantinham relacionamento amoroso, apesar de o genitor afirmar que não havia se separado da esposa nem pretendia constituir família com a mãe da autora.
Em decorrência disso, “o estudo social demonstrou, de modo inequívoco, que a presente ação foi ajuizada exclusivamente no interesse da genitora, que pretende constituir família com A.V.H. e, para tanto, tem-se valido da criança, forçando artificial aproximação” (e-STJ, fl. 102 – sem grifo no original).
Por conseguinte, como bem assinalado pelo STF no julgamento do RE n. 898.060⁄SP, o melhor interesse da criança deve sempre ser a prioridade da família, do Estado e de toda a sociedade, devendo ser superada a regra de que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica, e vice-versa.
Portanto, de acordo os elementos coligidos nos autos, os princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança inviabilizam, no caso concreto, o reconhecimento da multiparentalidade.
A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades sociafetiva e biológica não é uma regra, pelo contrário, a multiparentalidade é uma casuística, passível de conhecimento nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas a justifiquem, não sendo admissível que o Poder Judiciário compactue com uma pretensão contrária aos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável.
Frise-se, mais um vez, que a doutrina e a jurisprudência têm preconizado que a prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute, de um lado, o direito ao estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito à manutenção dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho.
Assim, reconhecer a multiparentalidade no caso em apreço seria homenagear a utilização da criança para uma finalidade totalmente avessa ao ordenamento jurídico, sobrepondo o interesse da genitora ao interesse da menor.
Outrossim, deve-se ressaltar que ficou demonstrado que a criança tem sido assistida material e afetivamente pelo pai socioafetivo, sendo que este, ademais, claramente afirma que continuará dispensando amor e carinho necessários à filha, ao contrário do pai biológico, que não demonstra nenhum interesse no registro ou a pretensão de se aproximar afetivamente da criança.
Por fim, levando-se em consideração que a presente ação foi intentada pela menor absolutamente incapaz, representada por sua genitora (reafirme-se, no interesse próprio desta), deve-se ressalvar o direito da filha de buscar a inclusão da paternidade biológica em seu registro civil quando atingir a maioridade, tendo em vista que o estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros (c.f. REsp n. 1.618.230⁄RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 28⁄03⁄2017, DJe 10⁄05⁄2017).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2016⁄0221386-0
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.674.849 ⁄ RS
Números Origem: 00417476720128210027 00877325320168217000 02711200176286 2711200176286 70066470931 70068775386 70070211925
EM MESA JULGADO: 17⁄04⁄2018
SEGREDO DE JUSTIÇA
Relator
Exmo. Sr. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. DURVAL TADEU GUIMARÃES
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : A C V D (MENOR)
REPR. POR : A P F V
ADVOGADO : PIETRO TOALDO DAL FORNO E OUTRO (S) – RS075757
RECORRIDO : E A C D
ADVOGADO : MAURICIO PAZ JUSTEN E OUTRO (S) – RS066904
RECORRIDO : A V H
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS – SE000000M
ASSUNTO: DIREITO CIVIL – Família – Relações de Parentesco – Investigação de Paternidade
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Terceira Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Documento: 1698834 Inteiro Teor do Acórdão – DJe: 23/04/2018