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TJRS: Transexualidade alteração Registro Civil

Ascom

(…) É cabível a alteração do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça

RMLP

Nº 70070998570 (Nº CNJ: 0310051-31.2016.8.21.7000)

2016/Cível
APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. MUDANÇA DE SEXO. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. desnecessidade. precedentes jurisprudenciais.

É cabível a alteração do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça.

APELAÇÃO PROVIDA.

Apelação Cível

Oitava Câmara Cível
Nº 70070998570 (Nº CNJ: 0310051-31.2016.8.21.7000)

Comarca de Sapiranga

C.C.S.
..
APELANTE
M.P.

..
APELADO
ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo, nos termos dos votos a seguir transcritos.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Rui Portanova (Presidente) e Des. Ivan Leomar Bruxel.

Porto Alegre, 29 de setembro de 2016.

DES. RICARDO MOREIRA LINS PASTL,

Relator.

RELATÓRIO

Des. Ricardo Moreira Lins Pastl (RELATOR)

Trata-se de recurso de apelação interposto por CCS contra sentença que julgou parcialmente procedente o pedido de retificação de registro civil para “determinar a alteração tão somente do nome do requerente de CCS para CS, permanecendo com o gênero masculino até quando da realização da cirurgia de transgenitalização” (fl. 110).

Refere que ainda não se submeteu à cirurgia de redesignação sexual, pois pretende realizá-la após a conclusão do curso superior de designer, que ocorrerá no final do corrente ano, tendo em vista que necessitará de um período de repouso pós-operatório de, no mínimo, três meses.

Defende que, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização, mostra-se imprescindível a alteração do gênero da sua certidão de nascimento para “feminino”, a fim de obstar contradições entre seu prenome e o gênero.

Sustentando que a alteração postulada resguarda seus direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à dignidade humana, após colacionar precedentes jurisprudenciais, requer o provimento do recurso (fls. 111/113).

Os autos foram remetidos a esta Corte, opinando a Procuradoria de Justiça pelo provimento do apelo (fls. 121/122).

Registro que foi observado o disposto no artigo 931 do Novo Código de Processo Civil, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.

É o relatório.

VOTOS

Des. Ricardo Moreira Lins Pastl (RELATOR)

Eminentes colegas, conheço da apelação, que é própria, tempestiva e dispensada de preparo.

Na espécie, como relatado, a parte recorrente objetiva a alteração de seu sexo (de masculino para feminino), argumentando, em resumo, que, com o deferimento da alteração de seu prenome, o gênero constante em seu registro ficará em descompasso com a sua identidade social.

A questão que remanesce, portanto, diz respeito apenas e tão somente à referência ao gênero no assento civil e, avaliados os elementos informativos coligidos nos autos, com o devido respeito pelas razões recursais, adianto-lhes minha compreensão de que a insurgência comporta acolhimento.

Isso porque, como ponderou a assistente social do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, E. S, “através de entrevistas individuais, reuniões em grupo, entrevistas com familiares, identificamos que o papel que assume caracteriza-se como feminino” (fl. 14).

A prova oral segue esse viés, referindo o informante IAG, que Cla. é conhecido por Cle. e se apresenta na sociedade como mulher, registrando, ainda, que todos os colegas de faculdade reconhecem a parte autora como mulher e a chamam por Cle. (fl. 40). A irmã da parte apelante, CSN, mencionou que as pessoas em geral a reconhecem como mulher e que desde pequeno Cla. possui identidade feminina (fl. 41).

Da mesma forma, as matérias jornalísticas acostadas nas fls. 97/101 corroboram que Cla. não apenas se apresenta à sociedade como Cle., ou seja, com sua identidade feminina, mas se reconhece como transexual e, inclusive, é presidente de uma Organização Não-Governamental voltada à prestação de apoio às pessoas portadoras do vírus HIV e ao público LGBT.

Logo, com a devida vênia pelo entendimento em sentido oposto, penso que, comprovada a identidade de gênero diferente daquele designado quando do nascimento, corolário lógico é também a alteração do designativo de sexo (em verdade, gênero) no registro civil.

Realço ser evidente o descompasso vivenciado pela apelante entre o seu sexo de nascimento – verdade cromossômica e imutável, com ou sem a cirurgia reclamada pela sentença – e o seu sexo psicológico, sua verdade essencial. E que leva à disforia de gênero (transexualismo).

Só que a superação dessa reconhecida desinteligência, de uma alma de um gênero cativa em um corpo físico de outro gênero, não pode ficar presa ao caráter, por assim dizer, meramente morfológico da questão, com a devida vênia.

Nesse mister, e até como expressão do conceito de mínimo existencial, cumpre ao julgador estar atento e reconhecer que para qualquer pessoa, qualquer uma, repriso, o exercício de sua própria identidade – no caso, de gênero – é fundamental para o seu desenvolvimento como ser humano e para uma existência digna, sem constrangimentos e sem situações burlescas, caricatas.

Nesse sentido, destaco que o ilustre Des. EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, integrante da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em processo que tratava de situação análoga, especificamente acerca da desnecessidade de cirurgia de transgenitalização à modificação do prenome e sexo, realçou, com absoluta propriedade, que, “em que pese esta busca da felicidade pela via da técnica cirúrgica, forçoso reconhecer que a cirurgia é apenas um paliativo quanto a aparente correção de ‘defeito’ de pessoa que nasceu homem num corpo de mulher, ou que nasceu mulher num corpo de homem. Como se vê, a transgenitalização não é, por si só, capaz de habilitar o transexual às condições reais do sexo e da identidade do gênero a final desejadas, pois a identificação sexual é um estado mental que preexiste à nova forma física resultante da cirurgia. Não permitir a mudança de sexo no registro civil com base em condicionante meramente cirúrgica equivale a prender nas amarras de uma lógica formal a liberdade que clama o transexual de ser e de realizar-se como ser humano, constituindo mais um obstáculo a que o indivíduo venha a ser o que sempre foi, sendo ainda uma resistência ao convite ético feito pelo poeta grego Píndaro: ‘torna-te o que já és, aprendendo com a experiência da vida’” (Apelação Cível n.º 0013986-23.2013.8.19.0208).

Peço licença para fazer minhas essas ponderações, permitindo-me ainda anotar que a Procuradoria-Geral da República, ainda no ano de 2009, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade objetivando a interpretação conforme a Constituição do art. 58 da Lei n.º 6.015/73, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 9.708/98, para que se reconheça o direito dos transexuais, que assim o desejarem, à substituição de prenome e sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização (feito ainda pendente de julgamento), sustentando o pedido na existência do direito fundamental à identidade de gênero, inferido dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da igualdade (art. 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (art. 3º, IV), da liberdade (art. 5º, caput), e da privacidade (art. 5º, X).

Por fim, como pontua a insigne Ministra NANCY ANDRIGHI em elucidativo precedente, atinente ao REsp 1.008.398/SP, julgado em 15.10.2009, “quando se iniciou a obrigatoriedade do registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição do gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente. Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, devem ser considerados”, ressaltando, ademais, que “a falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. […]. Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente”.

Nesse viés, alinho precedentes do STJ e desta Corte de Justiça:

Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana. – Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça -, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual. – A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade. – A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano. – Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. – Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana. – A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo. – Conservar o ‘sexo masculino’ no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente. – Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido. – Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73. – Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar. – Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. – De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar ‘imperfeições’ como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido. (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 15/10/2009, DJe 18/11/2009)

REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N. 211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO. 1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza constitucional. 2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo. 3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC. 4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial. 7. Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, j. em 10/11/2009, DJe 18/12/2009)

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. MUDANÇA DE PRENOME E DE SEXO. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. SENTENÇA MANTIDA. É cabível a alteração do prenome e do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70067389593, Oitava Câmara Cível, TJRS, Relator Ricardo Moreira Lins Pastl, 04/02/2016)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. ALTERAÇÃO DO SEXO/GÊNERO DO AUTOR. TRANSEXUALISMO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL. VIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO. Considerando que a identificação pelo gênero não é morfológica, mas, sim, psicológica e que o apelante comporta-se e identifica-se como um homem, seu gênero é masculino, sobrepondo-se à sua configuração genética, o que justifica a alteração no seu registro civil, assegurando o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Apelação provida. (Apelação Cível Nº 70064746241, Sétima Câmara Cível, TJRS, Relator Jorge Luís Dall’Agnol, 30/09/2015)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. MUDANÇA DE SEXO. TRANSEXUALIDADE. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. Quando está comprovado que a retificação do registro de nascimento não trará qualquer prejuízo à sociedade e, sobretudo, garante a dignidade da pessoa humana daquele que a pleiteia, cumpre a procedência do pedido. Sentença mantida. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível Nº 70052872868, Oitava Câmara Cível, TJRS, Relator Alzir Felippe Schmitz, 04/04/2013)

ANTE O EXPOSTO, voto pelo provimento do recurso.

Des. Rui Portanova (PRESIDENTE)

Rogando vênia ao eminente Desembargador. Bruxel, acompanho o colega Ricardo Pastl.

Des. Ivan Leomar Bruxel

Já externei meu posicionamento a respeito do tema em julgados anteriores.

Sobre o ponto, muito debatido em cenários jurídicos e até mesmo fora do Direito, peço vênia para divergir, como já o fiz anteriormente – apelações 70 065 224 461, 70 066 488 529 e 70 067 669 895 – pelos seguintes fundamentos.

O pedido consiste na alteração do sexo na certidão de nascimento, isto é, na seara do Registro Civil de Pessoas Naturais, sobre o qual vigem os preceitos do Direito Registral, esse disciplinado pela Lei nº 6.015/73.

Esse diploma traz uma série de princípios que são norteadores da atividade registral. E dentre eles está o princípio da verdade real, que tem por finalidade precípua consagrar e concretizar a segurança jurídica. Por este motivo todo e qualquer ato registrado necessita transparecer a verdade existente e atual e não apenas aquela que passou.

Cumpre salientar que a existência de registro público tem a justificativa na necessidade de atribuir eficácia do ato/negócio jurídico registrado perante terceiros, pela publicidade que confere, além de, em alguns casos, ser requisito para a validade do ato jurídico em si, em algumas hipóteses de negócios jurídicos solenes.

Assim sendo, diante da sua importância perante a sociedade civil e pela fé pública que atribui, ele deve espelhar sempre a verdade.

E a pergunta que exsurge: a parte autora é do sexo feminino? Fisiologicamente não, considerando que não se submeteu à cirurgia de transgenitalização.

Muito bem.

O registro civil serve, dentre outras finalidades, a dar conhecimento a terceiros dos atos registrados. E se alguém que é do sexo feminino pede para passar o registro de gênero ao sexo masculino – ou o contrário – , mesmo não o sendo, não será possível acolher tal pretensão, porque não expressa a verdade.

Claro que o teor do enunciado 43 da 1ª Jornada de Direito de Saúde do Conselho Nacional de Justiça não deve passar despercebido, e da mesma forma não devem ser ignoradas as novas tendências do Direito de Família, com a constante relativização de institutos jurídicos outrora absolutos.

Mas o que está em jogo aqui, entre outros – é o conhecimento de terceiros sobre o ato de registro de nascimento. Até porque a parte autora vive em uma sociedade, na qual há pessoas que com ela se relacionam, bem como outras que poderão se relacionar juridicamente, e a tais pessoas pode ser interessante, quiçá indispensável, saber a real identidade, a realidade dos elementos de identificação, onde se inclui o sexo.

Assim, a proteção ao terceiro de boa-fé, que acredita fielmente estar estabelecendo relações jurídicas (quaisquer que sejam), deve ser garantida, em nome da segurança jurídica. Aliás, a tendência axiológica do Novo Código Civil é proteger, justamente, o terceiro de boa-fé. Por exemplo, alguém pode acreditar que vai casar com outro do sexo masculino/feminino, mas na verdade está se casando com alguém do sexo feminino/masculino, fisiologicamente falando. Tal situação de engodo não pode ser chancelada pelo Direito.

Até mesmo porque a interpretação no que diz respeito à alteração do registro, mesmo sem corresponder à realidade fática, chancela o engodo, pois tem aptidão de enganar terceiros. Aqui, até mesmo para obter certidão de quitação militar.

A seguir assim, logo mais adiante será possível admitir que, diante das modernas técnicas de rejuvenescimento, será possível aceitar que alguém altere o registro civil para documentalmente ficar mais jovem, de acordo com sua aparência.

Ou, ao revés, alguém que tenha aparência alquebrada, ou envelhecida, sem que importem aqui os motivos, poderá postular alteração do registro de nascimento, com a mesma finalidade inicial aparente, de simplesmente adaptar os documentos à aparência, mas esta mesma falsidade poderá servir, mais tarde, para ludibriar a previdência.

Afinal de contas, pra algumas situações o sexo ainda se constitui em diferencial.

Enfim, o princípio da verdade real deve ser integralmente observado quando se trata de registros públicos.

E, apenas para arrematar:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DO AUTOR. TRANSEXUALISMO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO, UMA VEZ NÃO PREVISTA CIRURGIA PARA MUDANÇA DE SEXO, NEM MESMO PROVA ROBUSTA ACERCA DA ABRANGÊNCIA DO TRANSTORNO SEXUAL. APELAÇÃO DESPROVIDA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70056132376, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol, Julgado em 13/11/2013)

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. TROCA DE NOME E SEXO. À equação do presente pertinente a averbação no assento de nascimento do (a) recorrente sua condição de transexual. Aplicação dos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos, pois estes devem corresponder à realidade fenomênica do mundo, sobretudo para resguardo de direitos e interesses de terceiros. POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO EM PARTE, VENCIDO O RELATOR, DES. RUI PORTANOVA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70041776642, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 30/06/2011)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DA AUTORA. TRANSEXUALISMO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO, UMA VEZ NÃO PREVISTA CIRURGIA PARA MUDANÇA DE SEXO, NEM MESMO DE PROVA ROBUSTA ACERCA DA ABRANGÊNCIA DO TRANSTORNO SEXUAL. VOTO VENCIDO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70042797167, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 14/12/2011)

REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ POSSÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a mudança do nome, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. 2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do requerente. 4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é, que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgão genitais tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso desprovido, por maioria. (Apelação Cível Nº 70064503675, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 24/06/2015)

Todavia, quando do julgamento da apelação 70 068 118 256, o feito ficou assim ementado:

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. MUDANÇA DE SEXO. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. desnecessidade. precedentes jurisprudenciais. sentença mantida.

É cabível a alteração do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça.

APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA.

O mesmo resultado na apelação nº 70 68 060 425:

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. MUDANÇA DE PRENOME E DE SEXO. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. desnecessidade. sentença mantida.

É cabível a alteração do prenome e do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça.

APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA.

E também na apelação 70 067 460 931:

APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. MUDANÇA DE SEXO. CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. desnecessidade. precedentes jurisprudenciais. sentença mantida.

É cabível a alteração do designativo de gênero/sexo no registro civil, independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização, quando comprovada cabalmente a identidade de gênero diferente do denominado quando do nascimento. Identificação psicológica que se sobrepõe à morfológica, em atenção ao comportamento e à identificação existentes, e em afirmação à dignidade da pessoa humana. Precedentes do STJ e desta Corte de Justiça.

APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA.

Cumpre observar que em tais julgamentos a composição foi ampliada, nos termos do art. 942 NCPC, de maneira que reflete o resultado preponderante quando da reunião das duas Câmaras Cíveis que detêm competência para o exame da matéria.

Assim é que, ressalvado entendimento pessoal, me rendo ao posicionamento majoritário.

– CONCLUSÃO.

Voto por dar provimento ao apelo.

DES. RUI PORTANOVA – Presidente – Apelação Cível nº 70070998570, Comarca de Sapiranga: “DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.”

Julgador (a) de 1º Grau: RICARDO PETRY ANDRADE

� “Você como universitária, transexual, e presidente da ONG, ainda sofre muito preconceito? Cléo. Eu não sofro tanto por já ser uma mulher há muitos anos. […]”. (fls. 97 e 99)

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