TJMA: família simultânea
(…) No caso sob análise, tem-se que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a apelante por mais de 15 (quinze) anos, o que caracteriza a família paralela, fenômeno de frequência significativa na realidade brasileira. O não reconhecimento de seus efeitos jurídicos traz como consequências severas injustiças. (…)
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL PÓS MORTE. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL CONCOMITANTES. SEPARAÇÃO DE FATO NÃO COMPROVADA. UNIÃO ESTÁVEL CONFIGURADA. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. FAMÍLIAS PARALELAS. FENÔMENO FREQUENTE. PROTEÇÃO ESTATAL. REFORMA DA SENTENÇA. APELAÇÃO PROVIDA. I -O reconhecimento da união estável exige demonstração de convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, bem como que inexistam impedimentos à constituição dessa relação. Inteligência dos artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil. II – No caso sob análise, tem-se que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a apelante por mais de 15 (quinze) anos, o que caracteriza a família paralela, fenômeno de frequência significativa na realidade brasileira. O não reconhecimento de seus efeitos jurídicos traz como consequências severas injustiças. IV – O Des. Lourival Serejo pondera: “Se o nosso Código Civil optou por desconhecer uma realidade que se apresenta reiteradamente, a justiça precisa ter sensibilidade suficiente para encontrar uma resposta satisfatória a quem clama por sua intervenção.” V – Ocomando sentencial deve ser reformado para o fim de reconhecer a união estável. VI – Apelação provida, contrariando o parecer ministerial.
(TJ-MA – APL: 0000632015 MA 0049950-05.2012.8.10.0001, Relator: MARCELO CARVALHO SILVA, Data de Julgamento: 26/05/2015, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/06/2015)
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SEGUNDA CÂMARA CÍVEL
Sessão do dia 02 de Junho de 2015
APELAÇÃO CÍVEL Nº 063/2015 – SÃO LUÍS
PROCESSO Nº 0049950-05.2012.8.10.0001
Apelante :S. M. C.
Advogado :Ronaldo Soares Malheiro
Apelado :J. C.C.
Advogado :Carlos Alberto Silva Nina, Enide Maria Aquino Nina e Carlos Sebastião Silva Nina
Relator :Desembargador Marcelo Carvalho Silva
ACÓRDÃO Nº __________________
EMENTA
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL PÓS MORTE. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL CONCOMITANTES. SEPARAÇÃO DE FATO NÃO COMPROVADA. UNIÃO ESTÁVEL CONFIGURADA. RECONHECIMENTO.
POSSIBILIDADE. FAMÍLIAS PARALELAS. FENÔMENO FREQUENTE. PROTEÇÃO ESTATAL. REFORMA DA SENTENÇA.
APELAÇÃO PROVIDA.
I -O reconhecimentodauniãoestável exige demonstração de convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida
com o objetivo de constituição de família, bem como que inexistam impedimentos à constituição dessa relação. Inteligência dos artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil.
II – No caso sob análise, tem-se que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a apelante por mais de 15 (quinze) anos, o que caracteriza a família paralela, fenômeno de frequência significativa na realidade brasileira. O não reconhecimento de seus efeitos jurídicos traz como consequências severas injustiças.
IV – O Des. Lourival Serejo pondera: “Se o nosso Código Civil optou por desconhecer uma realidade que se apresenta reiteradamente, a justiça precisa ter sensibilidade suficiente para encontrar uma resposta satisfatória a quem clama por sua intervenção.”
V – Ocomando sentencial deve ser reformado para o fim de reconhecer a união estável.
VI – Apelação provida, contrariando o parecer ministerial.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Desembargadores da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por maioria de votos, em desacordo com o parecer do Ministério Público, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do
Desembargador Relator.
Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Marcelo Carvalho Silva, Antônio Guerreiro Júnior e José de Ribamar Castro.
Funcionou pelo Ministério Público o Dr. Raimundo Nonato de Carvalho Filho.
São Luís (MA), 02 de Junho de 2015.
Desembargador Marcelo Carvalho Silva
Relator
APELAÇÃO CÍVEL Nº 063/2015 – SÃO LUÍS
PROCESSO Nº 0049950-05.2012.8.10.0001
RELATÓRIO
Adoto como relatório a parte expositiva do parecer do Ministério Público com atuação nesta instância (fls. 272/282), da lavra do eminente
Procurador de Justiça, Dr. Raimundo Nonato de Carvalho Filho, que ora transcrevo, in verbis:
Trata-se de Apelação Cível (fls. 222/236) interposta por S. M. C., contra a r. sentença proferida pelo MM. Juíza de Direito da 4
Vara da Família desta Capital (fls. 214/220) que, nos autos da Ação Declaratória de Reconhecimento de União Estável (pós-morte) promovida pela ora apelante, em face de J. C. C., julgou improcedente o pedido contido na exordial, nos termos do artigo 269 9, inciso I, do Código de Processo Civil l, não reconhecendo a união estável entre a autora com o falecido Francisco Eronildes Soares Constantino, uma vez que não restou comprovado nos autos requisitos legais da união estável.
Em razões de fls. 223/236, a ora Apelante aduz, preliminarmente, a nulidade da sentença, em “razão de suposta fundamentação inadequada
quanto à causa de pedir principal, já que esquivou-se em analisar a existência da separação de fato da apelada com de cujus, analisando apenas a causa de pedir imediata, ou seja, o pedido propriamente quanto ao reconhecimento da união estável.
Ainda em sede de preliminar, argui nulidade da sentença, por esta não ter sido proferida pela mesma autoridade que instruiu o feito.
Quanto a questão de fundo, sustenta que manteve, de forma ininterrupta, por mais de 15 (dez) anos, uma relação com o falecido, com animus de marido e mulher,” duradoura, pública e contínua “, havendo inclusive um filho em comum.
Segue aduzindo que na contestação apresentada pela requerida, ora Apelada, esta se limitou apenas a informar que não existe ação de inventário em tramitação, sequer impugnou os fatos narrados na inicial, nem discorreu sobre a matéria processual ou de direito.
Diz, também, que na Audiência de Instrução realizada, foram colhidos depoimentos mediante gravação de DVD, restando provados os elementos caracterizadores da existência de união estável entre a Apelante e o falecido, bem como a separação de fato deste em relação à Apelada.
Adiante, menciona acerca da existência da união estável, pois esta fora comprovada mediante a juntada de vários documentos, dentre estes a
certidão de filho havido pelo casal, endereço em comum nos diferentes locais em que conviveram durante a constância da união estável, bem
como a designação da companheira como dependente em clube recreativo, além de registros (comprovantes) de passeios e viagens realizadas em família e fotografias.
Destaca, que a Magistrada sentenciante equivocou-se quando fundamentou o decisum baseado na simples existência formal do casamento, sem
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analisar a causa de pedir principal, qual seja, existência da separação de fato, analisando apenas a causa de pedir imediata, ou seja, o pedido
propriamente quanto ao reconhecimento da união estável.
Por fim, aduz sobre a existência de um entendimento do STJ no sentido de que não há necessidade de início de prova material para o
reconhecimento da união estável, ainda que para fins previdenciários, bem como a companheira tem direito à pensão mesmo que o falecido fosse casado, desde que separado de fato.
Assim, requer que seja dado provimento ao apelo para cassar a sentença recorrida, proferindo-se nova sentença, com o devido exame das
questões suscitadas na inicial ou, sucessivamente, reformar a sentença para que julgue procedente o pedido formulado na exordial.
Em despacho de fl. 246, a MM . Juíza de base recebe o apelo interposto em seus efeitos legais e determina a intimação da parte ex adversa, a fim de que apresente as suas contrarrazões.
Ao contra-arrazoar (fls. 249/263) o recurso, a Apelada sustenta inicialmente que embora a Apelante diga ter mantido relação duradoura e estável com o falecido, cabia a ela provar tal convivência, visto que não provou, apenas juntou aos autos provas de que tinha apenas um relacionamento sexual com o marido da requerente, e com este teve um filho, e em razão disso, o mesmo custeava as despesas desse filho menor de idade, sendo natural que constasse seu nome no pagamento dessas despesas, no endereço em que o menor residia.
Da mesma forma defende que a Apelante omitiu a verdade sobre a existência de uma Ação de Oferecimento de Pensão, proposta pelo falecido,
em favor do filho que teve com esta, com o intuído de induzir o Judiciário a erro.
Argumenta que os depoimentos das testemunhas confirmaram apenas a existência do filho que a Apelante teve com o falecido, e a juntada das
fotos provou apenas reuniões furtivas com a apelante.
Assevera que pela regra do artigo 1.723, do novo Código Civil, é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, o que não restou provado pela Apelante.
Informa, ainda, a título de argumentação, que se levado em conta o disposto nos arts. 1658 e 1659, do novel Diploma Civil, da mesma forma
direito algum assiste à Apelante no que concerne à partilha de bens, na medida em que estes são oriundos de herança e/ou de valores
exclusivamente pertencentes ao Apelado.
Deste modo, requer seja negado provimento à apelação, mantendo-se a sentença em todos os seus termos.
À fl. 268, os autos são remetidos ao Egrégio TJ/MA, sendo estes recebidos e distribuídos ao Desembargador Relator Marcelo Carvalho Silva, que abriu vistas à Procuradoria Geral de Justiça (fl. 270v).
Acrescento que o representante ministerial, afastando as preliminares arguidas pela apelante, manifestou-se pelo conhecimento e não provimento do presente apelo, a fim de que seja mantida incólume a sentença recorrida.
É o relatório.
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VOTO
I – Da admissibilidade
Atendidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade exigidos para o regular andamento dos recursos, conheço, pois,do
presente apelo.
II – Da preliminar de nulidade da sentença
A apelante suscita, preliminarmente, a nulidade da sentença em razão de fundamentação inadequada, na medida em que a magistrada de 1º grau esquivou-se de analisar a existência da separação de fato da apelante com o de cujus, examinando apenas o reconhecimento da união estável.
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Entendo que tal preliminar não merece ser acolhida, pois o art. 460 do CPC, consagrou o princípio da congruência, também chamado de princípio da correlação ou da adstrição, segundo o qual a decisão judicial deverá guardar estrita relação com o que foi inicialmente pedido pelo autor.
Por outro lado, o princípio do” livre convencimento do juiz “confere ao magistrado o poder-dever de analisar os fatos e fundamentos que entende necessários ao equacionamento da questão, não estando adstrito às teses jurídicas apresentadas pelas partes (AgRg no Ag 685.087/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, julgado em 25.10.2005)
Portanto, não vislumbro na decisão da magistrada de base qualquer nulidade. O cerne da ação ajuizada pela apelante é o reconhecimento de união estável pós morte. A sentença, fundamentada, julgou improcedente o pedido, não reconhecendo a união entre a autora e o falecido.
O fato da decisão desagradar a apelante, não pode ser considerado motivo para decretar sua nulidade.
Foi suscitado ainda, segundo a apelante,” vício insanável “no dispositivo sentencial.
Ocorre que, ao redigir o nome do falecido no dispositivo da decisão de mérito, acabou dispondo-o de forma equivocada e errônea. Entretanto, de acordo com autorização contida no art. 463 do CPC, inexatidões materiais, como a do caso em análise, podem ser corrigidas, mesmo depois de
publicada a sentença. Foi o que ocorreu conforme despacho retificador de fls. 265/266.
Aduz ainda, em sede de preliminar, a nulidade da sentença pelo fato desta não ter sido prolatada pela mesma autoridade que instruiu o feito.
Contudo, não assiste razão à apelante, pois o princípio da identidade física do juiz não tem caráter absoluto.
Dispõe o art. 132 do CPC que”o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado,
afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.”O parágrafo único ressalva:”Em
qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.”
Considerando que não ficou comprovada a não ocorrência das hipóteses que excepcionam a aplicação da norma do artigo 132, entendo que a
sentença não deve ser anulada.
Diante de todo o exposto, rejeito todas as preliminares apresentadas pela apelante.
III – Do mérito recursal
Apesar de não vislumbrar qualquer nulidade na sentença de base, entendo que esta merece ser reformada.
O cerne da demanda reside no reconhecimento da união estável da apelante com o de cujus, para que a mesma seja habilitada no inventário, bem como seja reconhecida como dependente para fins de recebimento da pensão por morte.
O direito de família, por envolver relações afetivas, deve sempre ter como foco o contexto social onde se insere, devendo refletir a evolução da
sociedade.
As mudanças ocorridas nas estruturas sociais ao longo dos anos transformaram muitos conceitos, antes inflexíveis, no que diz respeito à família. A união estável e suas condições de existência também acompanharam essas transformações sociais.
Até o advento da CF/88, a lei reconhecia apenas o casamento civil. A família era apenas e tão somente constituída pelo casamento.
A Carta Magna revolucionou ao dar status de entidade familiar a uniões antes tidas como”ilegítimas”ou”moralmente inadequadas”. Dessa
forma, fez com que a união estável fosse merecedora da proteção estatal. Assim dispõe o art. 226, § 3º:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A Lei nº 9.278/96, que regula o§ 3º do art. 226 da Constituição Federal, prevê:
Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com
objetivo de constituição de família.
Art. 2º São direitos e deveres iguais dos conviventes:
I – respeito e consideração mútuos;
II – assistência moral e material recíproca;
III – guarda, sustento e educação dos filhos comuns.
Nesse contexto, transcrevo o entendimento da doutrinadora Maria Berenice Dias:
“A sacralização do casamento faz parecer que seja essa a única forma de constituir família. Mas é à família, e não ao casamento, que a
Constituição chama de base da sociedade, merecedora da especial atenção do Estado.
(…)
A Constituição, ao garantir especial proteção à família, citou algumas entidades familiares, as mais frequentes, mas não as desigualou. Limitou-se a elencá-las, não lhes dispensando tratamento diferenciado. O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável e, por último, a
família monoparental não significa qualquer preferência nem revela escala de prioridade entre eles. Ainda que a união estável não se confunda
com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção.”
A união estável, disciplinada no Código Civil (arts. 1.723 à 1.727), tem requisitos legais a serem observados, quais sejam: convivência pública, contínua e duradoura (elemento objetivo), estabelecida com a finalidade de constituição de família (elemento subjetivo).
Com relação à publicidade, entende-se que a união estável deve ser transparente e notória. Não pode ser escondida, às escuras ou clandestina.
Como bem assevera Ana Cláudia Scalquete,”não quer dizer que os atos praticados pelo casal devam ser levados ao conhecimento de todos, mas sim que o relacionamento não aconteça às escondidas e que ambos ajam naturalmente como qualquer outro casal.”
O requisito da continuidade pressupõe que a união estável seja duradoura, não eventual.
O objetivo de constituição de família caracteriza-se pela intenção do casal de ter uma vida e interesses comuns. Para Rolf Madaleno,”constituir família do ponto de vista da união estável, tal como no casamento, inicia pelo amor que tratou por primeiro, de unir o casal heterossexual, e em associação de propósitos e de fins comuns, para dali em diante, afeiçoados, determinarem por seu diuturno convívio, um conjunto já
preexistente de recíprocos direitos e obrigações, tudo com vistas na repartição do seu amor, e de sua felicidade, por eles e seus eventuais filhos, que agregam novas emoções.”
Desta feita, importante registrar que a caracterização da união estável depende das circunstâncias de cada caso concreto e que seus requisitos
devem ser analisados de forma global, uma vez que a ausência de um pode ser suprida pela prova de outro. Ainda na lição de Ana Cláudia
Scalquete:
“Encerramos os requisitos para a configuração da união estável ressaltando que todos devem ser analisados em conjunto e com cautela, pois a
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pequena presença de um pode ser suprida pela robusta prova do outro, dessa forma, perfazendo o conteúdo necessário para o reconhecimento da união pelo órgão judicante.”
In casu, resta comprovada a união estável em face do preenchimento dos requisitos supramencionados. Entretanto, o § 1º do art. 1.723 ressalva
que”a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a
pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.”Portanto, o CC admite a possibilidade de caracterização da união estável, desde que haja a separação de fato da pessoa casada.
Entretanto, ao examinar detidamente os autos, observo que as provas carreadas dão conta que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a apelante por mais de 15 (quinze) anos.
Explico.
Os documentos acostados pela apelante (Certidão de Nascimento do filho havido em comum, fotos, comprovantes de residência em nome do de cujus nos dois endereços onde viveram, recibos eletrônicos de passagens aéreas, documento de clube onde consta a apelante como dependente), além dos depoimentos pessoal e testemunhais, inclusive da própria apelada, comprovam a existência de união estável pública, contínua e com o objetivo de constituir família entre a Sra. Silvana Mendes Costa e o Sr. Francisco Eronildes Soares Constantino.
Em contrapartida, depõem a favor da” fragilidade “da separação de fato da apelada com o falecido: a Certidão de Casamento; a Certidão de
Óbito, onde a esposa figura como declarante; a homologação de acordo para custeio educacional firmado entre a apelante e o de cujus; a Ação de Alimentos ajuizada pelo falecido em favor do filho havido com a apelante; a condição de dependente do Sr. Francisco no plano de saúde da
esposa; a presença da mesma na viagem para tratamento de saúde que culminou com a morte do Sr. Francisco; além dos depoimentos pessoal e testemunhais.
Desse modo, estamos diante de duas famílias paralelas ou seja, aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável.
É inegável que a família vem passando por um processo evolutivo constante. A moderna doutrina prevê a possibilidade (e a necessidade) de
reconhecimento da união estável paralela ou simultânea ao casamento, em atenção ao princípio da dignidade humana, a fim de valorizar os laços afetivos existentes e dar-lhes juridicidade. Como é sabido, trata-se de fenômeno de frequência significativa na realidade brasileira, e o não
reconhecimento de seus efeitos jurídicos traz como consequências severas injustiças.
Nesse contexto, transcrevo entendimento da doutrinadora Maria Berenice Dias:
“Pretender elevar a monogamia ao status de princípio constitucional autoriza que se chegue a resultados desastrosos. Por exemplo, quando há
simultaneidade de relações, simplesmente deixar de emprestar efeitos jurídicos a um, ou pior, a ambos os relacionamentos, sob o fundamento de que foi ferido o dogma da monogamia, acaba permitindo o enriquecimento ilícito exatamente do parceiro infiel. Resta ele com a totalidade do
patrimônio e sem qualquer responsabilidade para com o outro”.
“O legislador se arvora o papel de guardião dos bons costumes e busca a conservação de uma moral conservadora e, muitas vezes,
preconceituosa. A técnica legislativa sempre aspirou a estabelecer paradigmas comportamentais estritos por meio de normas cogentes e
imperativas. Elege um modelo de família e a consagra como única forma aceitável de convívio. A postura é intimidadora e punitiva, na esperança de gerar comportamentos alinhados com os comandos legais. Na tentativa de desestimular atitudes que se afastem do parâmetro comportamental reconhecido como aceitável, nega juridicidade ao que se afasta do normatizado. Os exemplos são vários. Basta lembrar a rejeição à uniões
extramatrimoniais.”
Não se afigura razoável que a mulher, que dedicou sua vida ao companheiro, fique totalmente desamparada no momento em que ela e o filho
mais necessitam de auxílio. Não se trata, de forma alguma, de retirar direitos da esposa, mas sim de reconhecer direitos à companheira
simultânea, aplicando-se o princípio da boa-fé objetiva, deferindo-se à companheira direitos decorrentes de uma união pública, contínua e
duradoura.
A respeito do tema, o eminente Desembargador Lourival Serejo, proferindo um voto corajoso e despido de qualquer preconceito ao julgar a
Apelação nº 19048/2013, fez as seguintes considerações:
“Dentre as novas formas de famílias hoje existentes, despontam-se as famílias paralelas: aquelas que se formam concomitantemente ao
casamento ou à união estável.
Se a lei lhe nega proteção, a justiça não pode ficar alheia a esses clamores.
(…)
Não se pode deixar ao desamparo uma família que se forma ao longo de muitos anos, principalmente quando há filhos do casal.
Garantir a proteção a esses grupos familiares não ofende o princípio da monogamia, pois são situações peculiares, idôneas, que se constituem,
muitas vezes, com o conhecimento da esposa legítima.
A doutrina e a jurisprudência favorável ao reconhecimento das famílias paralelas como entidades familiares são ainda tímidas, mas suficientes
para mostrarem que a força da realidade social não deve ser desconhecida quando se trata de praticar justiça.
(…)
Se o nosso Código Civil optou por desconhecer uma realidade que se apresenta reiteradamente, a justiça precisa ter sensibilidade suficiente para encontrar uma resposta satisfatória a quem clama por sua intervenção.
(…)
Não se pode desconhecer a existência de afeto sustentando essas uniões, tanto que a maioria resulta na formação de prole.”
A seguir, colaciono alguns precedentes que reconhecem a juridicidade das famílias paralelas:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL . RELACIONAMENTO PARALELO AO CASAMENTO . As provas carreadas aos autos dão
conta de que o de cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união estável com a autora por mais de vinte anos.
Assim, demonstrada a constituição, publicidade e concomitância de ambas as relações familiares, não há como deixar de reconhecer a
união estável paralela ao casamento, que produz efeitos no mundo jurídico, sob pena de enriquecimento ilícito de uma das partes. O termo
inicial da união estável é o período em que as partes começaram a viver como se casados fossem, isto é, com affectio maritalis. (TJRS – Ap. Cível n. 70016039497, 8ª CC. Relator: Des. Claudir Fidélis Faccenda). (grifei).
DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE
RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco
anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo , que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de
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convivência afetiva – pública, contínua e duradoura – um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e
sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e
cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente.
Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e
preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também
compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina – palavra preconceituosa – mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere
esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e
continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar
irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro. (MINAS GERAIS. TJMG. APELAÇÃO CÍVEL nº. 1.0017.05.016882-6/003 – RELATORA: DESª MARIA ELZA. Data do Julgamento: 20/11/08. Data da publicação: 10/12/08). (grifei).
APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA.” TRIAÇÃO “. ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes
jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato
particular assinado pelos companheiros e por 3 testemunhas; e ratificada pela existência de filho em comum, por inúmeras fotografias do casal
junto ao longo dos anos, por bilhetes e mensagens trocadas, por existência de patrimônio e conta-bancária conjunta, tudo a demonstrar relação pública, contínua e duradoura, com claro e inequívoco intento de constituir família e vida em comum. Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de” triação “, em sede de liquidação de sentença, com a participação obrigatória da esposa formal. Precedentes jurisprudenciais. Ex-companheira que está afastada há muitos anos do mercado de trabalho, e que tem evidente dependência
econômica, inclusive com reconhecimento expresso disso no contrato particular de união estável firmado entre as partes. De rigor a fixação de
alimentos em prol dela. Adequado o valor fixado a título de alimentos em prol do filho comum, porquanto não comprovada a alegada
impossibilidade econômica do alimentante, que inclusive apresenta evidentes sinais exteriores de riqueza. Apelo do réu desprovido. Apela da
autora provido. Em monocrática. (TJRS,, Apelação Cível nº 70039284542, Rel. Des. Rui Portanova, 8ª Câm. Civel, j, 23/12/2010). (grifei).
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. CASAMENTO E
UNIÃO ESTÁVEL SIMULTÂNEOS. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO. 1. Ainda que de forma incipiente,
doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam
concomitantemente ao casamento ou à união estável . 2. Aforça dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica
para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias
matrimonializadas. 3. Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou
aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: Na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é
concebido como estritamente adulterino, e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é
generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridade próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem
iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere a famílias paralelas. O preconceito – ainda que
amenizado nos dias atuais, sem dúvida – ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial. 4.
Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de
procedência do pedido formulado em ação declaratória. 5. Apelação cível provida. (TJ/MA – AC nº 19048/2013 – Terceira Câmara Cível -Rel. Des. Lourival Serejo – 10/07/2014). (grifei).
PROCESSUAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RATEIO ENTRE A EX-ESPOSA E A EX-COMPANHEIRA.
ACÓRDÃO EMBASADO EM PREMISSAS FÁTICAS. REVISÃO. SÚMULA 07/STJ. I – O Tribunal a quo, com base na análise do
acervo fático-probatório dos autos, concluiu que não ficou descaracterizada a união estável suficiente para afastar a decisão do INSS de ratear e pensão por morte entre a ex-esposa e a ex-companheira do de cujus. II – Rever tal entendimento, com o objetivo de acolher a
pretensão recursal, demandaria necessário revolvimento de matéria fática, o que é inviável pelo Superior Tribunal de Justiça, no recurso especial, à luz do óbice contido na Súmula n. 7 desta Corte: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. III – agravo regimental improvido.” (AgRg no Ag 1380994/PR, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, QUINTA TURMA, julgado em 19/11/2013, DJe
25/11/2013) (destaquei).
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO
ESTÁVEL. CONFIGURAÇÃO. SÚMULA 7/STJ. SEPARAÇÃO DE FATO ENTRE CÔNJUGES. POSSIBILIDADE DE
RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL. SÚMULA 83/STJ. (…) 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui
entendimento no sentido de que a existência de casamento válido não obsta o reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato ou judicial entre os casados. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.”(AgRg no AREsp n. 494.273/RJ, Relatora Ministra
MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 10/6/2014, DJe 1º/7/2014) (destaquei).
Por derradeiro, cumpre aqui transcrever trechos do voto-vista proferido pelo então ministro do STF, Carlos Aires Britto, no julgamento do
Recurso Extraordinário n. 397.762:
“Sabido que, nos insondáveis domínios do amor, ou a gente se entrega a ele de vista fechada ou já não tem olhos abertos para mais nada? Pouco importando se os protagonistas desse incomparável projeto de felicidadeadois sejam ou não, concretamente, desimpedidos para o casamento
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civil? Tenham ou não uma vida sentimental paralela, inclusive sob a roupagem de um casamento de papel passado? (vida sentimental paralela
que, tal como a preferência sexual, somente diz respeito aos respectivos agentes)? Pois que, se desimpedidos forem, a lei facilitará a conversão do seu companheirismo em casamento civil, mas, ainda que não haja tal desimpedimento, nem por isso o par de amantes deixa de constituir essa por si mesma valiosa comunidade familiar? Uma comunidade que, além de complementadora dos sexos e viabilizadora do amor, o mais das vezes se faz acompanhar de toda uma prole? E que se caracteriza pelo financiamento material do lar com receitas e despesas em comunhão? Quando a não formação de um patrimônio igualmente comum, por menor ou maior que ele seja? Comunidade, enfim, que, por modo quase invariável, se
consolida por obra e graça de um investimento físico-sentimental tão sem fronteiras, tão sem limites que a eventual perda do parceiro sobrevém como vital desfalque econômico e a mais pesada carga de viuvez? Para não dizer a mais dolorosa das sensações de que a melhor parte de si
mesmo já foi arrancada com o óbito do companheiro? Um sentimento de perda que não guarda a menor proporcionalidade com o modo formal, ou não, de constituição do vínculo familiar? Minha resposta é afirmativa para todas as perguntas. Francamente afirmativa, acrescento, porque a
união estável se define por exclusão do casamento civil e da formação da família monoparental. É o que sobra dessas duas formatações, de modo a constituir uma terceira via: o tertium genus do companheirismo, abarcante assim dos casais desimpedidos para o casamento civil, ou,
reversamente, ainda sem condições jurídicas para tanto. (…) Sem essa palavra azeda, feia discriminadora, preconceituosa, do concubinato. Estou a dizer: não há concubinos para a Lei Mais Alta do nosso País, porém casais em situação de companheirismo. (…) à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma
concomitante relação sentimental a dois. (…) Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante o qual o Ordenamento Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. Não censora ou por qualquer modo embaraçante.”
Assim, concluo que o comando sentencial deve ser reformado para o fim de julgar procedente o pedido formulado na inicial, declarando a
existência de união estável entre Silvana Mendes Costa e o de cujus Francisco Eronildes Soares Constantino, com todas as repercussões de
direito.
III – Quadra final
Ante o exposto, em desacordo com o parecer ministerial, conheço e dou provimento a apelação, nos termos da fundamentação supra.
Registro que, do julgamento realizado em 02 de Junho de 2015, participaram com votos, além do Desembargador Relator, os Excelentíssimos
Senhores Desembargadores Antônio Guerreiro Júnior e José de Ribamar Castro.
É como voto.
São Luís (MA), 02 de Junho de 2015.
Desembargador Marcelo Carvalho Silva
Relator