Afeto define nova configuração familiar em decisões judiciais
Fonte: JOTA
Por Natália Gonçalves
Brasília
natalia.goncalves@jota.info
Novas decisões judiciais vêm ampliando o conceito do que é família na sociedade brasileira, com a permissão de novas configurações familiares sem contar necessariamente com profundas mudanças legislativas. Exemplos disso são casamentos entre pessoas do mesmo sexo, modelos mais flexíveis de guarda compartilhada e famílias com mais de dois indivíduos exercendo o papel de pai e mãe são tratados em processos que, além do tradicional juridiquês, trazem temas como afeto, carinho e cuidado.
Dessa forma, o Brasil acompanha decisões de vanguarda internacional na proteção da privacidade e liberdade em busca da felicidade. Em junho, por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que o casamento homoafetivo deve ser permitido em todo o país.
Segundo Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a consolidação de interpretações judiciais que beneficiam minorias e questões de gênero é o caminho para um sistema judicial melhor.
“A lei tem que proteger toda sociedade, não apenas os que se encaixam em modelos arcaicos de família”, afirmou.
Legislativo reacionário
Para a juíza Maria Berenice Dias, defensora dos direitos LGBT, a lei não pode se pautar pelas conquistas sociais.
“Se a evolução do pensamento é lenta, a lei deve ser pedagógica”, afirmou. “Precisamos de um Judiciário que sobreviva a um Legislativo reacionário.”
Em sua avaliação, ainda leva muito tempo promover a atualização das leis quando o assunto são relacionamentos homoafetivos, por exemplo.
“O Judiciário precisou se impor, por meio de decisões ousadas”, assinalou.
Equiparados
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão de fevereiro de 2010, equiparou a união homoafetiva e a união estável heterossexual para fins de pensão em previdência privada.
A ministra Nancy Andrighi entendeu que, comprovada a existência de união afetiva, os benefícios previdenciários pertencem ao companheiro.
No entanto, até ali ainda era necessário provar uma relação de longa duração. O casal em questão morou junto por mais de quinze anos. Nesse período, compraram apartamento, carros, celebraram o Natal e se apresentavam a amigos como maridos.
A relação dos dois só se tornou plenamente legal em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a legitimidade de uniões estáveis entre casais do mesmo sexo.
“Sem a decisão do STF, a união dependia da interpretação de cada juiz”, afirmou a advogada especialista em direito de família, Chyntia Barcellos. “Agora, é um direito incontestável.”
A resolução nº175, na qual o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que casais homossexuais podem realizar o casamento civil, foi o último passo para assegurar direitos igualitários. “Quando você pode chamar o seu companheiro de marido, a relação ganha um peso social maior”, disse Chyntia.
Tanto a decisão do Supremo quanto a resolução do CNJ facilitaram a adoção para casais do mesmo sexo. “A lei entende que é sempre melhor ter uma família, pais amorosos, independentemente de qual seja essa formação”, afirmou Rodrigo da Cunha. “Pai e mãe são quem te criam, te amam.”
Sem limites
De acordo com o advogado, a interpretação da maternidade e a paternidade como resultados de uma construção afetiva, não apenas biológica, é o que levou o direito de família brasileiro a permitir famílias com mais de dois pais.
Segundo Cunha, não existe limite numérico para o amor, uma criança pode ter mais de dois pais e essa ser a melhor configuração familiar para ela. “Quem leva à escola, quem vai aos jogos de futebol, ao ballet. Quem cuida, esse é o pai”.
A advogada Chyntia Barcellos entrou com um pedido de reconhecimento de multiparentalidade no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO). A advogada representa as duas mãe, que vivem em união estável, e o pai biológico da criança. Uma das mães foi inseminada artificialmente por ele.
Os três são amigos há mais de vinte anos e decidiram criar a filha juntos. Ela mora com as mães e passa fins de semana com o pai, que também a visita durante a semana.
“Para a criança é a certeza de um futuro com mais segurança”, afirmou Chyntia. “Para as mães e o pai é um direito.”
“O bem estar da criança deve vir sempre em primeiro lugar”, acrescentou Cunha.
Guarda multicompartilhada
Com base nesse princípio, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 13.058 em dezembro, tornando a guarda compartilhada a orientação primária aos tribunais.
Para o presidente do IBDFAM, esse é o caminho mais fácil para a resolução de conflitos. “Compartilhar a guarda tira o poder de um dos lados. A criança não é mais joguete”, disse Rodrigo da Cunha.
Por anos, os tribunais interpretaram as estruturas familiares da seguinte maneira: mãe é afeto e pai é dinheiro. Essa dicotomia fez com que, em casos de divórcios, a guarda dos filhos geralmente fosse atribuída a mãe.
“O monopólio materno levava, em muitos casos, à alienação parental. A guarda compartilhada é o antidoto contra esse mal”, explicou.
A guarda compartilhada entrou na legislação brasileira em 2008, com a Lei 11.698, que alterou o Código Civil de 2002. Em 2011, a Terceira Turma do STJ decidiu que a guarda compartilhada poderia ser aplicada mesmo sem o consenso dos pais.
A ministra relatora Nancy Andrighi acreditava que a guarda compartilhada deveria ser regra e a custódia física, aplicada sempre que possível.
“Os direitos dos pais em relação aos filhos são, na verdade, outorgas legais que têm por objetivo a proteção à criança e ao adolescente”, escreveu a ministra em seu voto “exigir-se consenso para a guarda compartilhada dá foco distorcido à problemática, pois se centra na existência de litígio e se ignora a busca do melhor interesse do menor.”
A guarda compartilhada permite que tanto pai quanto mãe façam parte da criação diária do filho. Ela não será acatada caso seja provado que um dos pais não tem competência para criar a criança ou se houver abdicação dos direitos paternais. “A guarda compartilhada não é para forçar a paternidade. É para permitir que os pais possam exercer o papel que lhes é de direito”, afirmou Cunha, do IBDFAM.
Nova interpretação
De acordo com o desembargador Lourival Serejo, do Tribunal de Justiça do Maranhão, o direito de família deve se dedicar a reinterpretar os direitos de uniões civis mesmo fora do casamento formal.
Para ele, as mudanças recentes nas formações familiares afastam a noção de que casamento é a única maneira de constituir famílias. “Não se pode deixar ao desamparo uma família que se forma ao longo de muitos anos, principalmente quando há filhos”, afirmou o desembargador.
Em julho de 2014, o juiz reconheceu como união estável a relação entre um homem casado e sua companheira extraconjugal, com quem viveu por dezessete anos. “Moravam e trabalhavam juntos. Eles estavam unidos pelo afeto que dedicavam um ao outro.”
Para o juiz, a companheira e a esposa deveriam dividir o espólio do falecido. “O reconhecimento dessas famílias vai contra a moralidade anacrônica de muitos tribunais brasileiros”, afirmou Serejo. Em 2008, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) reconheceu a legalidade das uniões entre um homem e duas outras mulheres, fora do seu casamento oficial.
O desembargador Rui Portanova decidiu que o réu deveria dividir os bens adquiridos no período das uniões paralelas entre as três mulheres. O tribunal também determinou que ele deveria pagar pensões as três mulheres.
“O direito de família tem que, acima de tudo, olhar o outro com empatia”, afirmou o juiz Lourival Serejo. “A família paralela, construída por meio do afeto, é tão real quanto a que se declara em cerimônias oficiais.”