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STJ: Sucessões

Ascom

(…) Segundo Maria Berenice Dias, o afeto é justamente o divisor de águas entre o direito obrigacional e o direito de família, e o desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que autorize nominá-las como família, como se afere da seguinte lição: “(…) É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional cujo núcleo é a vontade para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos . Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto (…) O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e doeudemonismo , impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento , ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado “. (Manual de direito das famílias, Editora Revista dos Tribunais, 9ª Edição, 2013, págs. 42-43 – grifou-se) Nesse contexto, a mais adequada interpretação, no que diz respeito à separação convencional de bens, é aquela que entende ter o cônjuge direitos sucessórios em concorrência com os herdeiros do autor da herança, sendo essa, de resto, a interpretação literal, lógica e sistemática do próprio dispositivo, valendo consignar, por fim, que a lei que rege a capacidade sucessória é aquela vigente no momento da abertura da sucessão (art. 1.787 do CC).

Superior Tribunal de Justiça
Revista Eletrônica de Jurisprudência RECURSO ESPECIAL Nº 1.472.945 – RJ (2013⁄0335003-3) RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): Trata-se de recurso especial, interposto com fulcro nas alíneas “a” e “c” do artigo 105, inciso III, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro assim ementado:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DAS SUCESSÕES. VIÚVA. SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO DE HERDEIRA NECESSÁRIA, POR IMPOSIÇÃO DO ART. 1829, I, DO CPC. IMPOSSIBILIDADE DE SE CONSIDERAR A SEPARAÇÃO CONVENCIONAL COMO ESPÉCIE DO GÊNERO SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA , ANTE O FLAGRANTE ANTAGONISMO ENTRE OS TERMOS ‘CONVENÇÃO’ E ‘OBRIGAÇÃO’. NORMA EXCEPCIONAL QUE, PORTANTO, NÃO COMPORTA INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA , SOB PENA DE VIOLAÇÃO À SEGURANÇA JURÍDICA. PRECEDENTE DA 3ª TURMA DO STJ (REsp 992-749⁄MS) QUE, NÃO POSSUI CARÁTER VINCULANTE, TAMPOUCO TEVE O CONDÃO DE PACIFICAR A MATÉRIA ATINENTE À REGULAMENTAÇÃO DA SUCESSÃO PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002. CASAMENTO DURADOURO (MAIS DE 25 ANOS), SITUAÇÃO FÁTICA DIAMETRALMENTE OPOSTA ÀQUELA DO JULGAMENTO DO EGRÉGIO STJ, ONDE SE APRECIOU UNIÃO COM DURAÇÃO DE APENAS 10 MESES. RELEVANTE CRÍTICA DOUTRINÁRIA AO PRECEDENTE DA CORTE SUPERIOR , GUARDADA A DEVIDA VÊNIA (CARLOS ROBERTO GONÇALVES – DIREITO CIVIL BRASILEIRO, VOLUME 7). SUCESSÃO LEGÍTIMA QUE, COMO INDICA A PRÓPRIA DENOMINAÇÃO, SEGUE A ORDEM LEGAL . PROTEÇÃO DO NOVO CÓDIGO AO CÔNJUGE, HERDEIRO NECESSÁRIO DA PARTE DO PATRIMÔNIO NÃO ALCANÇADA POR MEAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO, CONFIRMANDO-SE A DECISÃO DERECONHECIMENTO DA VIÚVA COMO HERDEIRA NECESSÁRIA” (e-STJ fls. 195-196 – grifou-se).

Cuida-se, na origem, de agravo de instrumento interposto por Ariana Duarte Pereira, única filha de Paulo Roberto Vilela Pereira, falecido em 28.12.2011 (e-STJ fl. 31), contra decisão proferida pelo Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Volta Redonda⁄RJ (e-STJ fls. 117-119), nos autos da ação de inventário nº 0001930-30.2012.8.19.0066 que admitiu a viúva Solange Jacob Whehaibe, casada com o autor da herança desde 11.2.1984, sob o regime de separação convencional (e-STJ fl. 32), como sua herdeira necessária, motivo pelo qual a cônjuge supérstite foi nomeada inventariante nos autos principais.

Noticiam os autos que a inventariante ficou casada com o de cujus por 27 (vinte e sete) anos.

A remoção da cônjuge sobrevivente do referido cargo foi pleiteada em sede de agravo de instrumento pela ora recorrente, pedido que não foi provido nos termos da ementa supracitada.

Os embargos de declaração opostos contra o acórdão recorrido foram rejeitados (e-STJ fls. 250-258).

Nas razões do apelo nobre, aduz a recorrente, em síntese, além de dissídio jurisprudencial, que, à luz do art. 1.829, inciso I, do Código Civil, o cônjuge casado no regime de separação convencional de bens não é herdeiro necessário, apontando divergência jurisprudencial com base em acórdão desta Corte, da lavra da Ministra Nancy Andrighi (REsp nº 992.749⁄MS), que teria afastado o cônjuge virago, em casamento pelo regime da separação obrigatória de bens da condição de herdeira necessária.

Afirma, ainda, contrariedade ao artigo 535, II, do Código de Processo Civil por não ter havido manifestação sobre os artigos 113, 187, 421, 422, 1.639, 1.687, 1829, I, e 2.039 do Código Civil. E, por fim, pugna para que o recurso não fique retido (art. 542, § 3º, do CPC).

Após as contrarrazões (e-STJ fls. 430-446), o recurso especial foi inadmitido, ascendendo a esta Corte por força de decisão proferida em sede de agravo de instrumento (e-STJ fls. 523-525).

O Ministério Público Federal, instado a se manifestar, deixou de ofertar parecer, já que “a causa versa sobre questão patrimonial (inventário⁄partilha) não havendo cumulação de demandas que envolvam interesse de menor, as partes são capazes e estão devidamente representadas nos autos” (e-STJ fl. 515).

É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 1.472.945 – RJ (2013⁄0335003-3) VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA (Relator): Em regra, o recurso especial originário de decisão interlocutória proferida em inventário não deve ficar retido nos autos, sob pena de o procedimento se encerrar sem que haja, propriamente, decisão final de mérito, razão pela qual merece ser conhecido o presente recurso especial, restando evidenciada a inaplicabilidade do art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil ao caso concreto.

No tocante à alegada negativa de prestação jurisdicional, agiu corretamente o Tribunal de origem ao rejeitar os embargos declaratórios, por inexistir omissão, contradição ou obscuridade no acórdão embargado, ficando patente, em verdade, o intuito infringente da irresignação, que objetivava a reforma do julgado por via inadequada.

Ultrapassado o juízo de admissibilidade recursal, porquanto devidamente prequestionada a matéria federal apontada como violada, bem como demonstrado o dissídio jurisprudencial alegado no apelo nobre, passa-se ao exame do mérito.

O recurso não merece prosperar.

Cinge-se a controvérsia a perquirir se o art. 1.829, I, do Código Civil de 2002 confere ao cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional a condição de herdeiro necessário, independentemente do período de duração do casamento. A pretensão primordial do recurso especial é justamente afastar a viúva da condição de herdeira, bem como a sua nomeação ao cargo de inventariante.

O artigo 1.829, I, do Código Civil de 2002, utilizado como fundamento central do recurso especial, versa sobre a concorrência do cônjuge com os descendentes na sucessão hereditária, nos seguintes termos: “Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente , salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; (…)” (grifou-se). A qualidade de herdeira necessária ostentada pela viúva restou reconhecida pelo acórdão recorrido à luz da supramencionada legislação e com base na seguinte fundamentação, que merece ser mantida incólume: “(…) Nos casos de falecimento ab intestato (sem deixar testamento), ante a ausência de disposição final, feita pelo autor da herança, a sucessão se dá pela ordem legítima, ou seja, a vocação hereditária segue as disposições do Código Civil, consoante o art. 1829 e seguintes. Nesse sentido, dispõe o inciso I do art. 1829: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte : I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; Como se vê, o dispositivo legal deixa expresso que, como regra geral na sucessão legítima, o cônjuge sobrevivente concorre com os herdeiros, ressalvados, tão somente, os casos expressamente referidos – casamento pelo regime da comunhão universal, da separação obrigatória ou da comunhão parcial quando o autor da herança não houver deixado bens particulares. Neste caso, a viúva foi casada pelo regime da separação convencional, hipótese que, portanto, não se enquadra entre as exceções da parte fmal do artigo supracitado . Outrossim, não há que se falar em subsunção da separação convencional como eventual espécie da separação obrigatória, pois os próprios conceitos são antagônicos, ou seja: aquilo que é obrigatório não possui abertura para convenção, pois é uma imposição legal .Ademais, por se tratar de norma excepcional, não se admite a interpretação extensiva de dispositivo que limita direitos sob pena de afronta à segurança jurídica. De fato, como a literalidade do texto legal não afasta a condição de herdeiro do cônjuge sobrevivente, casado pela separação convencional, não pode o intérprete fazê-lo, sob pena de surpresa indevida aos particulares,gerando insegurança às relações civis . Nesse ponto, cumpre afastar a alegação da agravante quanto à suposta pacificação da matéria pelo Egrégio STJ, por ocasião do REsp n° 992.749⁄MS, onde houve a exclusão da viúva em sucessão hereditária, haja vista que se trata de julgamento sem efeito vinculante além das partes do próprio processo . O fato é que, por se tratar de seara sujeita a diversas alterações pelo Código de 2002 em relação ao regime anterior, grande controvérsia surgiu em relação à correta interpretação dos dispositivos pertinentes. Não se pode falar, assim, em pacificação pela ocorrência de precedente único, mesmo advindo da Colenda 3′ Turma, pois, a matéria sequer foi submetida à apreciação da Segunda Seção (que engloba a 3ª e 4ª Turmas), tampouco foi objeto de súmula.Cumpre destacar que a situação fática do presente feito é diametralmente oposta àquela do julgamento pela 3ª turma do Egrégio STJ, onde se apreciou união com duração de apenas 10 (dez) meses, enquanto, no caso presente, o relacionamento conjugal durou mais de 25 (vinte e cinco) anos , como bem apontou o douto Julgador a quo. É digna de nota, ainda, a existência de relevante crítica doutrinária às razões adotadas no julgamento do referido recurso especial, merecendo reprodução o seguinte trecho da lição do eminente professor Carlos Roberto Gonçalves , já citado no próprio corpo do decisum a quo (fls. 114), em comentários ao mesmo aresto (grifei): ‘Observa-se que se procurou, na hipótese, fazer justiça no caso concreto, mencionando o acórdão de não ter havidolonga convivência do casal (cerca de dez meses), bem como a circunstância de que, quando desse segundo casamento, o autor da herança, pessoa idosa, já havia formado todo o seu patrimônio e padecia de doença incapacitante. Por essa razão, acredita-se que tal orientação não servirá de diretriz para a generalidade dos casos.'(Direito Civil Brasileiro, volume 7, pág. 174). Desse modo, superada a questão acerca do precedente judicial que, consoante exposto, não se mostra aplicável à hipótese, não restam dúvidas quanto à improcedência do presente recurso. Isso porque, tratando-se de sucessão legítima que, como indica a própria denominação, segue a ordem legal, não é dado ao intérprete pretender estender os efeitos do pacto antenupcial para além do término do casamento, inexistindo manifestação de vontade testamentária. Assim, ante a ausência de declaração do autor da herança acerca do eventual destino dos seus bens após a morte, segue-se a regra da sucessão legítima, considerada, ainda, a proteção, conferida pelo Código 2002 ao cônjuge, nos termos da parte inicial do art. 1.829, ostentando a condição de herdeiro necessário do patrimônio não alcançada por meação, como é o caso do casamento com separação convencional. Como se vê, não merece qualquer reforma a decisão a recorrida, que deu correta solução à lide, merecendo integral confirmação.Por todo o exposto, conheço e nego provimento ao presente recurso, mantendo a agravada na condição de herdeira e inventariante do espólio” (e-STJ fls. 199-203 – grifou-se) . Por oportuno, saliento que no precedente invocado pela recorrente, qual seja, o REsp nº 992.749⁄MS, amplamente rechaçado pelo acórdão impugnado, afirmou-se que ” se o casamento foi celebrado pelo regime da separação convencional, significa que o casal escolheu – conjuntamente – a separação do patrimônio. Não há como violentar a vontade do cônjuge – o mais grave – após sua morte, concedendo a herança ao sobrevivente com quem ele nunca quis”,desqualificando a viúva, ora recorrida, como herdeira.

Contudo, não assiste razão à recorrente, já que as hipóteses de exclusão da concorrência, tais como previstas pelo artigo 1.829, I, do Código Civil, evidenciam a indisfarçável intenção do legislador de proteger o cônjuge supérstite. É que o intuito de plena comunhão de vida entre os cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) motivou, indubitavelmente, o legislador a incluir o sobrevivente no rol dos herdeiros necessários, o que reflete irrefutável avanço do Código Civil de 2002 no campo sucessório.

Note-se, por oportuno, que a tese relacionada com a condição de herdeira do cônjuge casado sob a égide do regime de separação convencional de bens resta amparada não apenas na letra da lei, mas também no Enunciado nº 270 do Conselho da Justiça Federal, que assim dispõe: “O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”.

Com efeito, importante sublinhar que o pacto antenupcial somente pode dispor sobre a comunicação ou não de bens e o modo de administração do patrimônio no curso do casamento, não podendo invadir, por óbvio, outras searas, dentre as quais destaca-se a do direito sucessório, cujo fato gerador é a morte de um dos cônjuges e não, como cediço, a vida em comum. As situações, por serem distintas, não comportam tratamento homogêneo, à luz do princípio da especificidade.

Logo, não merece acolhida a tese de que o regime de bens seria extensivo após a morte, em uma espécie de ultratividade do regime patrimonial, que teria uma suposta eficácia póstuma. É que a sociedade conjugal, por força expressa do art. 1.571, I, do Código Civil, extingue-se com o falecimento de um dos cônjuges, incidindo, a partir daí, regras próprias, à luz do princípio da especialidade, previstas no Livro V do Código Civil – que abrange o Direito das Sucessões.

Registre-se, por oportuno, que Mário Luiz Delgado, ao analisar o tema, salienta que a afirmação de que “ao atribuir direito sucessório ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, teria o legislador invadido a autonomia privada e abalado um dos pilares do regime de separação, por permitir a comunicação post mortem do patrimônio”, merece ser plenamente rechaçada. E assim é porque

“(…) o cônjuge, mesmo casado sob tal regime, na vigência do Código anterior, já herdava a totalidade da herança, bastando que não houvessem descendentes e ascendentes. Não se trata de comunicação de patrimônio, não se podendo confundir regime de bens com direito sucessório . Com a morte extinguiu-se o regime e o que está em discussão é o direito do cônjuge a uma pequena parte da herança, que, como veremos, pode ser bastante reduzida, bastando que o de cujus tivesse vários filhos e houvesse disposto em testamento toda a metade disponível.” (Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente: uma proposta de harmonização do sistema Autor: Mário Luiz Delgado Revista Autônoma de Direito Privado, Curitiba, nº 4, jul⁄set 2007, pág. 66 – grifou-se) A propósito, o concurso hereditário, na separação convencional, impõe-se como norma de ordem pública, sendo nula qualquer convenção em sentido contrário, porquanto disposição legal absoluta, à luz do art. 1.655 do Código Civil. Válido lembrar, ainda, que a convenção sobre herança de pessoa viva é também vedada pelo ordenamento jurídico ( pactacorvina – art. 426 do Código Civil).

Ressalte-se, aliás, que a opção dos cônjuges pelo regime de separação de bens pode se dar pelos mais diversos motivos, dentre os quais uma maior facilidade na administração do patrimônio de cada um ou prevenir a sua eventual redução em caso de divórcio, não cabendo projetar a ausência de meação na seara sucessória. Não se pode presumir, no entanto, que o pacto antenupcial nesse sentido seja fruto do desejo dos nubentes em perpetuar a intransmissibilidade entre seus patrimônios.

Não obstante a truncada redação do art. 1829, I, ora em estudo, depreende-se que a regra geral é a concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido, com vistas a garantir que o primeiro disponha de um mínimo necessário para sua sobrevivência. Tal proteção se estende ao cônjuge casado pela separação convencional (art. 1.687 do Código Civil), excluindo-se somente no caso de separação por imposição legal (art. 1.641 do Código Civil).

O objetivo da regra é garantir o sustento do cônjuge supérstite e, em última análise, a sua própria dignidade, já que, em razão do regime de bens, poderia ficar à mercê de toda sorte e azar em virtude do falecimento de seu cônjuge, fato que por si só é uma tragédia pessoal. A concorrência se justifica justamente por esse motivo, e se coaduna com a finalidade protetiva do cônjuge no campo do direito sucessório, almejada pelo legislador, em histórico avanço, devendo-se observar o princípio da vedação ao retrocesso social (REsp nº 1.329.993⁄RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17⁄12⁄2013, DJe 18⁄3⁄2014).

Não por outro motivo, Francisco Amaral, antes mesmo do advento do novo Código Civil de 2002, já alertava acerca das tendências do direito civil contemporâneo, no que tange à personalização do direito civil, no sentido da crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria de direitos e de princípio fundamental da Constituição (Direito Civil – Introdução. 3ª Edição – Rio de Janeiro: Renovar, 2000, páginas 151-153).

Em verdade, revela manifesta contradição admitir-se que, a despeito de o novo Código ter ampliado os direitos do cônjuge sobrevivente, assegurando ao casado pela comunhão parcial cota na herança dos bens particulares, ainda que fossem os únicos deixados pelo de cujus, e, incomunicáveis na vigência do regime de bens, não teria conferido o mesmo direito ao casado pela separação convencional, cujo patrimônio é inexoravelmente composto somente por acervo particular.

Com efeito, o cônjuge sobrevivente, casado sob a égide do regime de separação convencional, foi inegavelmente, elevado à categoria de herdeiro necessário, como se afere do teor do art. 1.845 do Código Civil de 2002. Por conseguinte passou a concorrer com os descendentes na sucessão legítima, já que o referido regime não foi arrolado como exceção à regra da concorrência posta no art. 1.829, I, do Código Civil. O artigo indicou expressamente quais os regimes de bens não comportariam a concorrência entre o cônjuge sobrevivente e os descendentes do falecido, não havendo referência alguma ao regime da separação convencional de bens. Desse modo, incide a reconhecida máxima de hermenêutica de que não pode o intérprete restringir onde a lei não excepcionou, sob pena de violação do dogma da separação dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal de 1988). Além disso, o regime da separação convencional de bens não se confunde com o regime da separação legal ou obrigatória de bens, o qual está excepcionado no artigo 1.829, I, do Código Civil, porquanto espécies distintas do gênero “separação”. Assim sendo, a separação convencional, escolhida livremente pelos nubentes à luz do princípio da autonomia de vontade (por meio do pacto antenupcial), não se confunde, obviamente, com aquela imposta de forma cogente pela legislação (art. 1.641 do Código Civil). Assim sendo, o cônjuge casado sob o regime da separação obrigatória de bens, seja por razões de ordem pública, seja por razões de proteção aos interessados (maiores de 70 anos), não concorre com os descendentes do de cujus, enquanto o cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional de bens concorre na sucessão legítima com os descendentes do falecido em todo o seu patrimônio, particular por natureza, de modo que se o viúvo não tem meação a resguardá-lo, ficaria desprotegido justamente na viuvez, circunstância que não se coaduna com a ampla proteção que a nova ordem conferiu ao cônjuge sobrevivente.

Não se pode olvidar que a disposição contida no artigo 1.829, inciso I, do Código Civil é fruto do avanço do pensamento jurídico acerca do assunto, há muito reivindicada pela doutrina nacional:

“(…) E nessa ordem de valores parece ter andado bem o legislador quando elevou o cônjuge e o companheiro a sucessores em grau de concorrência com os descendentes e ascendentes do de cujus, em quota-parte dependente da verificação de certos pressupostos que serão devidamente analisados nos tópicos pertinentes. É que, em fazendo com que o cônjuge supérstite concorra na sucessão do morto, premia aquele que esteve a seu lado até o momento de sua morte sem indagar se este contribuiu ou não para a aquisição dos bens postos em sucessão. Mas não deixa também de privilegiar os descendentes do autor da herança, garantindo-lhes meios de iniciar ou dar continuidade a suas vidas. E, na falta destes últimos, não esquece nem nega privilégio aos ascendentes do de cujus, responsáveis, no mais das vezes, pela formação e caráter do descendente falecido. Em assim agindo, o legislador demonstrou sapiência digna de nota e parece ter-se enquadrado entre aqueles que vêem como fundamento do direito sucessório não apenas o direito de propriedade em sua inteireza como também o direito de família, com o intuito de protegê- la, uni-la e perpetuá-la, como parecem ter querido os antigos mestres”. (Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes, Comentários ao Código Civil, vol. 20, coord. Antônio Junqueira de Azevedo, São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 14 – grifou-se) Ora, não é possível considerar incluída a separação convencional na expressão separação obrigatória, não havendo sequer falar na aplicação analógica de aspectos restritivos de outros institutos previstos pelo legislador para abarcar fatos da vida e atos jurídicos com particularidades bem definidas, de modo que incabível restringir a interpretação onde o legislador não o fez.

Ademais, seria de todo incoerente assegurar ao cônjuge casado pela comunhão parcial cota na herança de bens particulares, ainda que os únicos deixados pelo de cujus, e não conferir o mesmo direito ao casado pela separação convencional. Afinal, quando se casa pela comunhão parcial, o intuito é justamente evitar a comunicação dos bens adquiridos anteriormente ao casamento. Observa-se, contudo, que, apesar dessa opção dos nubentes, no momento da sucessão, o viúvo terá, à luz da legislação, participação hereditária no acervo particular.

Nessa ordem de ideias, a situação relativa à separação convencional reclama a mesma solução, devendo ser assegurada cota na herança dos bens particulares, ou seja, em todo patrimônio, ao cônjuge sobrevivente.

Outra solução afronta princípio de hermenêutica, segundo o qual deve-se preferir a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, em vez de reduzi-lo à inutilidade. Por outro lado, “não se presumem, na lei, palavras inúteis”, devendo-se compreendê-las como tendo alguma eficácia, a fim de determinar o sentido lógico da norma (mens legis) e aferir seu real espírito, sua verdadeira essência. Aliás, impõe-se, no caso, uma interpretação sistemática, a partir de todo o complexo sistema jurídico em que o texto interpretando se insere, que não deve ser analisado de forma isolada.

Carlos Maximiliano, de forma segura, quanto ao importante tema, considera que

“(…) as leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, faz-se mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 20ª Edição – 1951 – Editora Forense – pág. 1 – grifou-se)

Também não se deve ignorar que, em regra, a motivação do casamento é o afeto que une os cônjuges, além do desejo de constituição de um elo familiar comum. Não se nega, aliás, que a morte põe termo à expectativa da construção de uma vida a dois, o que dificilmente pode ser mensurado patrimonialmente. É a comunhão de vida, a proximidade e a afeição que legitimam a sucessão mútua. Nessa esteira, o próprio Supremo Tribunal Federal temperou a regra da incomunicabilidade de bens no regime da separação obrigatória editando a Súmula nº 377: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

Segundo Maria Berenice Dias, o afeto é justamente o divisor de águas entre o direito obrigacional e o direito de família, e o desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que autorize nominá-las como família, como se afere da seguinte lição:

“(…) É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional cujo núcleo é a vontade para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos . Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto (…) O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e doeudemonismo , impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento , ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado “. (Manual de direito das famílias, Editora Revista dos Tribunais, 9ª Edição, 2013, págs. 42-43 – grifou-se)

Nesse contexto, a mais adequada interpretação, no que diz respeito à separação convencional de bens, é aquela que entende ter o cônjuge direitos sucessórios em concorrência com os herdeiros do autor da herança, sendo essa, de resto, a interpretação literal, lógica e sistemática do próprio dispositivo, valendo consignar, por fim, que a lei que rege a capacidade sucessória é aquela vigente no momento da abertura da sucessão (art. 1.787 do CC).

Aliás, cite-se, por oportuno, as conclusões do Ministro João Otávio de Noronha, no Recurso Especial nº 1.430.763⁄SP, julgado na assentada do dia 19.8.2014, e ainda pendente de publicação, no sentido da inclusão do cônjuge casado sob o regime de separação convencional de bens (arts. 1.687 e 1.688 do Código Civil) no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845 do CC), admitindo sua concorrência com os descendentes do autor da herança, exegese adequada ao artigo ora em análise, como se vê da fundamentação calcada em expressiva corrente doutrinária: “(…) a interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil deve limitar-se à definição das hipóteses em que descendentes e cônjuge sobrevivente concorrem aos bens da herança, masnunca levar à conclusão de que o cônjuge não seja herdeiro necessário, sob pena de ofensa ao art. 1.845 . Não concordo também com a interpretação dada ao art. 1.829, I, do Código Civil pela qual se afasta a possibilidade de o cônjuge casado no regime de separação convencional de bens concorrer com o descendente na sucessão do falecido. Como decidi no voto divergente proferido no REsp nº 1.111.095⁄RJ -, embora a hipótese lá tratada não seja exatamente igual à do caso presente-, ‘importa destacar que, se a lei fez algumas ressalvas quanto ao direito de herdar em razão do regime de casamento ser o de comunhão universal ou parcial, ou de separação obrigatória, não fez nenhuma quando o regime escolhido for o deseparação não obrigatório, de forma que, nessa hipótese, o cônjuge casado sob tal regime, bem como sob comunhão parcial na qual não haja bens comuns, é exatamente aquele que a lei buscou proteger, pois, em tese, ele ficaria sem quaisquer bens, sem amparo, já que, segundo a regra anterior, além de não herdar (em razão da presença de descendentes) ainda não haveria bens a partilhar. ‘ Essa, aliás, é a posição dominante hoje na doutrina nacional, embora não uníssona (…)” (grifou-se).

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

É o voto.
Documento: 38729951 RELATÓRIO E VOTO

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