TJRS: Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo
(…) “A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, amparada na dignidade da pessoa humana, sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna. Assim, quando o valor penhorado não representa nem ao menos 1% da dívida garantida, sua penhorabilidade não pode ser analisada apenas com base no direito positivado, caso em que os princípios podem prevalecer sobre as regras.” (…)
PODER JUDICIÁRIO
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CER
Nº 70058544289 (Nº CNJ: 0046991-39.2014.8.21.7000)
2014/Cível
agravo. AGRAVO DE INSTRUMENTO. negócios jurídicos bancários. execução de título extrajudicial penhora on line. aposentadoria. poupança integrada à conta corrente. TEORIA DO PATRIMÔNIO MÍNIMO.
A existência de regras e princípios é o que torna o sistema jurídico equilibrado, uma vez que se composto apenas por princípios seria aberto e flexível demais, ao passo que se composto unicamente por regras seria demasiadamente fechado e rígido, sem qualquer válvula de escape para a solução de casos concretos.
A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, amparada na dignidade da pessoa humana, sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna.
Assim, quando o valor penhorado não representa nem ao menos 1% da dívida garantida, sua penhorabilidade não pode ser analisada apenas com base no direito positivado, caso em que os princípios podem prevalecer sobre as regras.
AGRAVO PROVIDO.
Agravo Vigésima Terceira Câmara Cível
Nº 70058544289 (Nº CNJ: 0046991-39.2014.8.21.7000) Comarca de Igrejinha
PAULO RICARDO UTZ AGRAVANTE
BANCO ITAU S/A AGRAVADO
MESQUITA & LIPPERTE LTDA. INTERESSADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Vigésima Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em DAR PROVIMENTO AO AGRAVO.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores Des. Alberto Delgado Neto e Des.ª Ana Paula Dalbosco.
Porto Alegre, 29 de abril de 2014.
DES. CARLOS EDUARDO RICHINITTI,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Carlos Eduardo Richinitti (RELATOR)
Trata-se de agravo interposto por PAULO RICARDO UTZ contra decisão monocrática que negou seguimento ao agravo de instrumento oferecido contra decisão que indeferiu a liberação de valores penhorados em ação executiva ajuizada contra si pelo Banco Itaú S.A.
Em suas razões recursais sustentou que o valor constrito proveniente da conta corrente mantida para recebimento de benefício previdenciário é destinado para tratamento de saúde. Afirmou que se trata de conta poupança originária de benefícios previdenciários e cujo saldo está dentro do teto de 40 salários mínimos, protegidos pela impenhorabilidade. Pediu o provimento do agravo.
É o relatório.
VOTOS
Des. Carlos Eduardo Richinitti (RELATOR)
Quando analisei sumariamente os autos proferi a seguinte decisão:
Conforme se depreende dos autos, houve liberação de R$ 968,38 por corresponder à aposentadoria do agravante (normal + 13º). O montante excedente e que restou bloqueado e penhorado, ainda que se admita decorrer dos valores recebidos pelo INSS, não são protegidos pela impenhorabilidade do artigo 649, IV, CPC.
A impenhorabilidade dos rendimentos de aposentadoria é relativa e tem como objetivo proteger o devedor para que receba os valores essenciais ao pagamento de suas despesas ordinárias. Daí porque a proteção que se refere o artigo persiste apenas para o mês em que houve o recebimento da verba salarial, sendo possível que o saldo positivo de determinado mês sofra a constrição, pois não goza mais da proteção legal.
Isso ocorre porque a “sobra” de salário de um mês para o outro perde o seu caráter alimentar, entrando na esfera de disponibilidade do agravante. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. ATO JUDICIAL. EXECUÇÃO. PENHORA. CONTA-CORRENTE. VENCIMENTOS. CARÁTER ALIMENTAR. PERDA.
– Como, a rigor, não se admite a ação mandamental como sucedâneo de recurso, tendo o recorrente perdido o prazo para insurgir-se pela via adequada, não há como conhecer do presente recurso, dada a ofensa à Súmula nº 267 do STF.
– Ainda que a regra comporte temperamento, permanece a vedação se não demonstrada qualquer eiva de teratologia e abuso ou desvio de poder do ato judicial, como ocorre na espécie.
– Em princípio é inadmissível a penhora de valores depositados em conta-corrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do devedor. Entretanto, tendo o valor entrado na esfera de disponibilidade do recorrente sem que tenha sido consumido integralmente para o suprimento de necessidades básicas, vindo a compor uma reserva de capital, a verba perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável.
Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento. (RMS 25.397/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/2008, DJe 03/11/2008).
Nesse contexto, ainda que o agravante indique que o montante penhorado seja proveniente apenas de aposentadoria, somente os valores recebidos no mês da constrição são absolutamente impenhoráveis.
Da mesma forma não se pode falar que o saldo bloqueado pertencia à conta poupança e que por tal razão não poderia ser penhorado em manifesta ofensa ao artigo 649, X, do CPC.
O documento da fl. 65 indica de forma suficiente que a conta nº 35,101982,0-9, de titularidade do agravante se trata de conta corrente, a qual não merece tratamento idêntico àquele dado às cadernetas de poupança.
Sabe-se, também, que algumas contas correntes bancárias possuem atreladas a ela a chamada poupança integrada, que absorve valores para investimento e da qual é resgatada quantia necessária para cobrir pagamentos, tudo isso de forma automática.
É entendimento pacífico nesta Corte que as poupanças integradas não se confundem com as cadernetas de poupança, estas sim gozam da proteção legal da impenhorabilidade, ao menos até o limite de quarenta salários mínimos. Nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. VALORES BLOQUEADOS PELO SISTEMA BACEN-JUD EM CONTA-CORRENTE COM POUPANÇA INTEGRADA. DECISÃO QUE RECONHECEU IMPENHORABILIDADE DOS VALORES BLOQUEADOS COM BASE NO ARTIGO 649, X, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DECISÃO AGRAVADA REFORMADA. Diante da comprovação de que a conta em que efetuado o bloqueio pelo sistema BACEN-JUD se trata de conta-corrente com poupança integrada, de se ter como inaplicável a regra da impenhorabilidade prevista no inciso X, do artigo 649, do Código de Processo Civil, que se limita aos casos específicos de conta-poupança. Decisão agravada reformada para afastar o reconhecimento da impenhorabilidade, mantendo-se o bloqueio e a penhora efetuada pelo sistema BACEN-JUD, com liberação dos valores mediante alvará judicial em favor do credor. Precedentes desta Corte. AGRAVO PROVIDO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº 70057212714, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 19/12/2013)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS À PENHORA. Trata-se de conta poupança integrada, e não exclusiva, demonstrando movimentação financeira própria de conta corrente, como depósitos, saques, e pagamentos. Inaplicabilidade do art. 649, X, do CPC. Precedentes deste Tribunal. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. (Agravo de Instrumento Nº 70057422941, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Walda Maria Melo Pierro, Julgado em 14/11/2013)
Some-se a isso a ausência de qualquer documento que indicasse de forma suficiente que o valor penhorado pertencia exclusivamente à conta poupança e que por isso estaria ao abrigo da impenhorabilidade.
Assim, mostrou-se acertada a decisão recorrida, ao autorizar a liberação do bloqueio na conta corrente do autor apenas dos valores decorrentes da sua aposentadoria, mantendo a penhora sobre o saldo.
Agora, em sede de agravo contra a decisão monocrática, e após analisar com mais afinco os autos tenho que aquela decisão comporta retratação nos termos do que dispõe o artigo 557, § 1º, do Código de Processo Civil, pelos fundamentos que passo a expor.
O ordenamento jurídico pátrio é composto por regras e princípios. São institutos diferentes, porém são espécies de normas jurídicas e não guardam hierarquia entre si.
A existência de regras e princípios é o que torna o sistema jurídico equilibrado, uma vez que se composto apenas por princípios seria aberto e flexível demais, ao passo que se composto unicamente por regras seria demasiadamente fechado e rígido, sem qualquer válvula de escape para a solução de casos concretos.
Há, ainda, preceitos que possuem natureza de princípio e regra. A Constituição Federal traz como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, sendo um dos direitos fundamentais garantidos pela Carta Magna.
Assim, a dignidade da pessoa humana é protegida pela ordem jurídica, sendo não apenas um princípio fundamental, mas também um direito fundamental.
Como princípio, é parâmetro de interpretação de toda a ordem jurídica, e não apenas dos direitos fundamentais. E como direito fundamental, tem proteção peculiar e por vezes está ligada a outros direitos.
Nesse contexto, é que Luiz Edson Fachin desenvolveu a Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo1, amparada na dignidade da pessoa humana e na qual sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna.
Ainda que para o Direito Civil o patrimônio responda pelas dívidas contraídas pelo indivíduo, deve ser resguardado um patrimônio mínimo, para a sua subsistência.
No ordenamento jurídico brasileiro é possível verificar a proteção ao patrimônio mínimo na impenhorabilidade do bem de família e também naquelas esculpidas no artigo 649, CPC.
No entanto, o julgador não deve estar limitado àquele rol, podendo estender a proteção conforme a situação do caso concreto atendendo, especialmente, o princípio-regra da dignidade da pessoa humana.
Atento a isso é que ao analisar melhor os autos verifico que o montante que permanece penhorado (R$ 5.367,84) não representa nem 1% do valor da dívida, ou seja, ao agravado – instituição financeira – pouco representa à solução da lide, porém ao autor – aposentado e com parcos rendimentos, pode representar a própria mantença. Registro, por entender oportuno, que a dívida executada nem ao menos foi contraída pelo agravante, sendo este apenas garantidor do débito.
Assim é que a solução do presente caso não deve se dar apenas com base no direito positivado, devendo ser permitido, por ora, o processamento do agravo de instrumento para que, sobrevindo maiores elementos, seja possível sopesar melhor os princípios e regras atinentes à situação concreta.
Diante do exposto, voto no sentido de PROVER o agravo para conferir o efeito suspensivo ao agravo de instrumento, determinando o seu regular processamento, com a intimação do agravado para contrarrazões.
Des. Alberto Delgado Neto – De acordo com o (a) Relator (a).
Des.ª Ana Paula Dalbosco – De acordo com o (a) Relator (a).
DES. CARLOS EDUARDO RICHINITTI – Presidente – Agravo nº 70058544289, Comarca de Igrejinha:”DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO. UNÂNIME.”
Julgador (a) de 1º Grau: VANCARLO ANDRE ANACLETO
1 FACHIN, Luiz Édson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.