Não se pode obrigar o pai registral a manter uma relação de afeto baseada no vício de consentimento, impondo-lhe os deveres da paternidade, sem que ele queira assumir essa posição de maneira voluntária e consciente. Esse foi o entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ ao dar provimento a um recurso para anular registro de paternidade, constatada a ausência de vínculo biológico e socioafetivo.
Para o Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR, embora tivesse mantido relacionamento casual com a mãe e fosse presumível que ambos pudessem ter outros parceiros sexuais, o autor da ação reconheceu a paternidade voluntariamente, na época do nascimento. Portanto, não teria sido induzido ao erro, tampouco poderia agora, cerca de dez anos depois, levantar dúvida sobre esse fato.
No STJ, com relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma considerou com unanimidade que o suposto pai foi induzido em erro na ocasião do registro, bem como não criou vínculo socioafetivo com a criança. Bellizze ressaltou que a paternidade socioafetiva deve prevalecer quando em conflito com a verdade biológica, e o pedido de anulação de registro só pode ser atendido com a demonstração de grave vício de consentimento.
A paternidade socioafetiva exige, por parte do pai, a vontade de ser reconhecido como tal – intenção que não pode decorrer de vício de consentimento, como se verificou no caso concreto. Assim, Bellizze reconheceu que o pai registral assumiu a paternidade por acreditar que a criança fosse fruto de seu relacionamento com a mãe, o que se revelou falso após o exame de DNA.
Para o ministro, que restabeleceu a sentença de primeiro grau, embora os relacionamentos contemporâneos sejam “cada vez mais superficiais e efêmeros”, isso não implica a presunção de que eventual gravidez deles advinda possa ser considerada duvidosa quanto à paternidade, “sob pena de se estabelecer, de forma execrável, uma prévia e descabida suspeita sobre o próprio caráter da genitora”.
“Comprovada a ausência do vínculo biológico e de não ter sido constituído o estado de filiação, os requisitos necessários à anulação do registro civil estão presentes, o que justifica a procedência do pedido inicial”, concluiu o relator.
Negatória de paternidade
Para o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em Direito de Família e Sucessões, as relações de consanguinidade, na prática social, não são mais importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência familiar, constituintes do estado de filiação, que deve prevalecer quando houver conflito com o dado biológico, salvo se o princípio do melhor interesse da criança ou o princípio da dignidade da pessoa humana indicarem outra orientação.
“A Constituição da República de 1988 excluiu todas as classificações pejorativas de filiação, isto é, adotou posição de igualdade para todas as formas de paternidade, inclusive alterando o paradigma que priorizava a paternidade biológica sobre as demais, registral e socioafetiva, igualando todos os filhos independente da origem genética, assentada no estado de filiação”, avalia.
O advogado ressalta ainda que o estado de filiação e a parentalidade não supõem, necessariamente, vínculo biológico, podendo ser determinado com base em critérios socioafetivos. Nesse sentido, a ausência da socioafetividade e o vício de consentimento justificam a decisão do STJ. “Por outro lado, se formado o vínculo de socioafetividade, uma simples gota de sangue não seria capaz de anular a verdadeira paternidade, no caso a socioafetiva”, completa.
Essa decisão do STJ se difere de outra proferida em outubro, que reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. Na ocasião, um homem que buscava retificar o registro civil de uma criança que, cinco anos depois do nascimento, descobriu não ser seu filho biológico teve o pedido negado pela Terceira Turma. O entendimento foi de que a inexistência de vínculo biológico não é suficiente e a mudança depende de prova robusta de que o suposto pai foi, de fato, induzido ao erro ou coagido.
Com informação do STJ